sábado, 11 de março de 2017

O lado de cá daquelas portas de vidro

Está calmo. É noite e cá dentro passadas as portas de vidro, vive-se num mundo cuja barreira não apenas física, mas principalmente psicológica, se altera. O ar muda, fica à porta muito de nós, entra connosco o melhor que temos adicionando a maior carga possível de boa energia. Por vezes, as nossas mochilas pessoais, sacos térmicos e malas não permitem levar muito mais connosco, mas cá dentro, na alma, cabe muito. Seja para levar o que temos, seja para trazer o que nos dão.
Falo e escrevo, na perspectiva de um profissional de saúde deste serviço. Já muitas vezes se abriram as portas “a estranhos”, todos são bem-vindos, quando assim é possível e quando o risco para os “nossos meninos” não se eleva perante os benefícios dessas entradas. Contudo, apesar dessas visitas, só quem mora por cá percebe o que escreverei, seja na perspectiva de doente, seja na perspectiva de cuidador, formal ou informal.
Enquanto cuidadores – pais, avós, tios, primos, amigos ou simplesmente pessoas de referência – essa visão já foi, outrora descrita (e bem). Dessa forma, foi-nos permitido entrar por meros minutos, na cabeça de quem tem um ser que ama a percorrer um caminho moroso, sinuoso e, por vezes, nada previsível. Quero agora mostrar através dos meus olhos, como vivo neste meu mundo, naquela que é graciosa, e orgulhosamente, a minha segunda casa.
Escrevo este texto após mais uma (longa) noite de trabalho. Como adjectivo que a descreva, apenas usarei, para já, a palavra longa.
Fez-se noite cedo neste dia de Inverno. Preparei-me para entrar no meu local de trabalho. Vou de coração apertado, ansioso e receoso por entrar, pois o serviço está cheio de crianças, de todas as idades, em várias fases de tratamento, com diversas patologias e muitas delas, nossas conhecidas. Muitas com intuito curativo, outras com um triste fim anunciado, onde o alívio de sintomas é a prioridade principal.
Ao chegarmos a este hospital a aura, por si só emanada pela sua existência e pelas energias de quem ali trabalha e é cuidado, sente-se como se uma bolha de humanismo nos pudesse invadir e não sabemos sequer de que direcção vem. A esta hora, 22h, já pouco movimento se vê, os estabelecimentos de apoio estão a fechar, os serviços de atendimento diurnos, responsáveis por receber grande parte do movimento do instituto, há muito que encerraram, e as últimas visitas dos pacientes, que teimosamente foram ficando, saem. Ficamos nós, que entramos para o trabalho, e os que já estavam a cumprir o seu dever, sem falar no principal oxigénio deste organismo, e que nos move, os doentes.



Após dar entrada, passar pelo segurança e subir pelo elevador, dando os últimos retoques e preparativos para entrar ao trabalho, chego ao 7º piso e, quer se acredite ou não, é uma viagem demorada e, tantas vezes associada a uma viagem de comboio urbano da linha de Sintra, onde as paragem são feitas em todas as estações e apeadeiros, neste caso em particular, vulgarmente conhecidos por pisos e serviços. Ao longo desta viagem, vão sendo recolhidos passageiros, todos vestidos de branco ou azul, e distribuídos pelas suas “estações”. As expressões emanadas pelos seus rostos são, desde sorrisos rasgados associados a cumprimentos, até expressões de sono e distracção de quem deambula sob efeito de “piloto automático”.
Chegamos então, às tão aclamadas portas de vidro que selam aquele local misterioso. Não podiam estar noutro local, no mais alto patamar do edifício e de frente para a capela, onde as preces diárias de dezenas de pessoas, profissionais, pacientes e familiares, são libertadas sob muitas formas, em busca de respostas, com o coração carregado de energias e sentimentos ora bons, ora maus. Apenas em busca de Alguém que os ouça, Alguém que os entenda, Alguém que lhes estenda a mão, e lhes dê paz na alma.
Nós, enfermeiros carregados de malas, mochilas, sacos e sacolas, como já referi, levamos bens-pessoais, comida para várias possíveis refeições (como se nós conseguíssemos ingerir sequer metade delas) e principalmente, levamos uma carga que não nos ocupa espaço físico, mas pesa. E se pesa. Falo de emoções, de expressões e de vontades, que inconscientemente escolhemos cuidadosamente para levar connosco. Tudo isto passou hoje comigo, uma vez mais, por estas portas de vidro.
Fardo-me e bebo o meu primeiro café, o meu combustível físico para aguentar mais um moroso turno da noite. Sento-me e olho em meu redor, vejo os meus colegas e não me agrada o que me transmitem. Não preciso de ver uma gota de suor nos seus rostos para ver o estado de exaustão, basta para isso ver as olheiras, o passo apressado, o cabelo desgrenhado, a respiração ofegante e ver – falo de ver realmente, com olhos e com o coração - as bancadas de trabalho e a mesa onde nos reunimos 3 vezes por dia. Tenho em mim duas opções para o explicar: ou passou um furacão ou foi uma tarde caótica de trabalho. Não questiono porque sei a resposta: foi a segunda opção.
Olho para a folha que tenho para receber o meu turno, escrever informações importantes de quem vou cuidar. Vejo muitos nomes, nomeadamente sete (oito no caso de outra colega), espalhados cuidadosamente numa folha A4, para que seja possível escrever tudo o que importa, de todos e cada um. A folha tem muitos nomes, o que por si só, determina que a minha ansiedade ao ir trabalhar, estava certa. Não há espaço para reclamar, mas fazemo-lo: verbalizamos desagrado, emitimos onomatopeias, lamurias, rimos em conjunto (como visível efeito da ansiedade que nos levaria para um de dois caminhos: o choro ou o riso. Escolhemos habitualmente o segundo, felizmente) e prosseguimos. Entre os que saem muito depois da hora estabelecida e nós, que queremos e pretendemos prosseguir os cuidados, gera-se uma fase inicial atribulada naquele nosso espaço. Há pressa para chegar a todos aqueles que temos para cuidar, no tempo que temos para o fazer, que nunca é suficiente. A sala de enfermagem, que se pretende que contenha os momentos atribulados, os sentimentos adversos e sele a passagem de tudo isso para o exterior, evitando transparecer para as crianças quaisquer sentimentos negativos, acaba por não cumprir o seu papel e, entre tantas entradas e saídas e o ranger da porta, é visível a ausência de calma e de uma presente agitação.
Nesta longa noite que passou, senti necessidade de escrever este texto e não o consegui fazer, por falta de tempo para isso. Precisava de calma, de espaço e de tempo, que não tive. Contudo, no escuro criei ideias para transpor, descrevi frases e conceitos e organizei sentimentos.
As primeiras horas são definidas como correria, avaliando sinais vitais, fazendo dezenas de metros para observar as crianças e cumprir horários de medicação, tentando enquanto enfermeiro responsável que quero ser, estar em 7 quartos no mesmo exacto minuto para que os antibióticos (por exemplo) não falhem a sua hora. Pois lamento transmitir que não consegui, o mundo dos super-heróis ficcionais era o único que me permitiria cumprir isso. Contudo, sendo humano, a velocidade que consigo atingir, é limitada. Falo e distingo o termo de super-heróis ficcionais por uma razão, esses existem nas séries, livros e filmes que temos acesso actualmente mas engane-se quem desacredita na existência de super-heróis reais. Desses, tenho comigo no serviço 22, mais umas centenas em suas casas ou lares temporários.
É por eles que ali estou, por eles que ali estamos todos. Toda a equipa multidisciplinar que ali exerce funções. Mas como enfermeiro que sou, a visão que quero passar, e que me é possível, desculpem-me os restantes, é a da minha profissão.
Somos nós os elementos presentes 24 horas por dia, 7 dias por semana e 365 (ou 366) dias por ano. Nesta noite, no silêncio destes corredores, fecho os olhos e escuto. O corredor está vazio, isento de movimento a esta hora e a única coisa que se vai alterando é o som de campainhas, o vermelho das mesmas reflectido no chão lavável, nos vidros que dividem os dois corredores do serviço, ou simplesmente as que não se repercutem nas lâmpadas das portas mas que sabemos que, lá dentro, alguém chama por nós. Chamam por dores, náuseas ou vómitos, por ter terminado alguma das mil medicações que administramos, porque a bateria de alguma das suas máquinas terminou, para algum tipo apoio emocional ou, até apenas, por engano. Já para não falar no resto da lista infinita de possibilidades.
É verdade, tocam a campainha e chamam-nos. Precisam e nós vamos, sem qualquer problema. O que mais me apercebo, no entanto, é que pode estar a ser um turno mau (em que, tal como os meus colegas do turno anterior, é notório o enorme desespero por se sentirem incapazes de cumprir todas as obrigações no seu tempo devido), mas dou por mim, a abrir cada porta, ir à minha mochila mental e inconscientemente, coloco o meu melhor sorriso antes de dizer: “Boa noite! O que aconteceu? Precisa de alguma coisa?”. Por muito cansado, por muito frustrado comigo, por muitos problemas que tenhamos na vida, ali deixam de existir, aquelas crianças levam-nos a um estado de transcendência que a mim, enquanto enfermeiro, enquanto Mário, me dá um sentido à profissão e mais, me dá um sentido enquanto pessoa!


Passam-se horas em que as campainhas parecem combinadas entre si, em modo de melodia, e lá nos dividimos entre o que podemos, para chegar a todos. Umas noites melhores que outras e a calmaria não é proporcional ao número de crianças. Por vezes, por uma questão de simples resolução, deslocamo-nos ao quarto de uma criança e acabam por passar horas. Acontece porque o medo e as dúvidas dos pais se multiplicam, porque a ligação que temos com essa criança é tal, em que simplesmente a energia que também precisamos obter, é conseguida em tempo de qualidade com ela, ou porque somos perfeccionistas e as coisas demoram a ser feitas com pormenor.
Somos humanos antes de seremos enfermeiros e como tal, a ligação que criamos com cada criança, cada familiar, não é igual. Enquanto enfermeiros desempenhamos os nossos cuidados de igual forma a todos, dando o nosso melhor, mas quando se tratam de “ligações coração-coração” com famílias e pacientes, o caso é diferente. Neste serviço, como disse no início, de crianças recém-nascidas a adolescentes, qualquer que seja a razão, as ligações pessoais têm diferentes intensidades e não se explicam. Somos humanos e somos sociais e tal como qualquer adulto, estes pequenos enormes heróis escolhem-nos também eles, como enfermeiros.
Um turno como a noite, geralmente mais silencioso, passado num longo corredor verde água, com paredes recheadas de brindes, oferecidos por ídolos dos mais pequenos (desde jogadores de futebol a músicos e cantores, entre outros), quadros e personagens ficcionais de animais, contrasta completamente com um turno como a manhã ou tarde onde, esse mesmo corredor é inundado de vida. Onde, se fecharmos os olhos, ouvimos conversas aleatórias de familiares que ali se conheceram e se uniram como apoio nesta dura luta dos seus dependentes, profissionais que passam com passos largos por todos, para chegarem a todo o lado, rodas de suportes de soros (carinhosamente chamados, muitas vezes, por bobby’s) e de triciclos, choro de crianças sujeitas a algum procedimento, por fome ou simplesmente contrariadas na sua vontade. E vêem-se sorrisos e ouvem-se risos. Muitos sorrisos se passam ali, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa.
As crianças com cancro não passam a vida a chorar, não passam a vida deprimidas e muito menos, abandonadas a um canto, sem família. Os sorrisos nunca são demais e são constantes. Acreditem que a maioria dos sorrisos largados no meio destes corredores e quartos é das crianças que ali estão, e não dos profissionais (e olhem que nós temos muitos sorrisos para dar, e enormes! Em nome do melhor que sabemos e do melhor lado que nos é exigido, por parte destes grandes e maravilhosos seres).
Há tanto para escrever sobre a forma como cuidamos, como damos de nós, como somos recebidos nos braços e carinhos destas crianças, mas eu fiz noite e ainda não dormi. Como referi aqui neste texto, sou humano e isso implica que o sono venha e o cansaço acumule. Para, enquanto enfermeiro, cuidar de crianças com cancro, não é preciso coragem, é preciso coração, é preciso amor. Não porque não o tenham, mas porque o processo que têm de passar é complicado e atribulado e a balança das emoções, tem de ser equilibrada. Para más energias já bastam as da doença. Nós, enfermeiros, jogamos do lado da equipa das crianças, vamos à baliza e vamos à frente, lado a lado com elas e com as famílias, porque disso depende o preço da nossa alma e da nossa consciência humana.
Quando acharem que para lá daquelas portas de vidro automáticas, mora apenas pesar e dor, acreditem que num pequeno enfermeiro, mora amor. Moram sorrisos e o choro, esse, mora quando o amor magoa e faz às crianças aquilo que, neste processo, vai sendo exigindo. Como qualquer guerra, não se vence sem várias batalhas.
Batalhas essas, que também as perdemos e nem tudo é colorido, é um facto. Resta-nos usar as armas que temos, os dois braços que possuímos e a boca ligada à alma e ao coração, para dar um abraço, ceder um ombro e seja com palavras, ou com silêncio apoiar o processo que é uma das maiores lutas da humanidade: a perda de alguém que se ama. Não somos de ferro, nem tampouco de pedra mas somos profissionais capazes de soldar emoções, chorar lágrimas doces ou salgadas e criar muros para proteger, como melhor for possível, aqueles que cuidamos.

Daqui, um enfermeiro do Serviço de Pediatria do IPO. Daí, espero que uma alma, aberta a uma nova visão do lado de cá daquelas portas de vidro.


Imagens retiradas do google.

Carta para ti próprio, para que não te esqueças!

Dia de aniversário, sentado no chão com as costas apoiadas num pilar. Está frio, sendo os valores de referência aqueles que se têm neste meu país que amo. Ao fundo, entre sons de aves, motores de automóvel, conversas aleatórias que nada mais fazem do que isso, barulho. Mais alto ainda, mas que ninguém ouve, estão os mil pensamentos que teimam em andar em redor de sítio algum. Já eu, antagonicamente estou num local que sei bem qual é, que já tanto ouvia falar mas apenas hoje lhe dei uma imagem real, colocada física e geograficamente. Falo do Hospital Dona Estefânia.

Diariamente trabalho com crianças, muitas vão daqui para lá por situações menos felizes, mas muitas vezes ou, pelo menos mais vezes do que gostariam, muitas são enviadas também para cá quando o estado assim o dita, por necessidade de cuidados intensivos. Isto tudo para dizer que este não é o dia de aniversário ideal para ninguém, quando pretendemos que o nosso dia seja memorável expectamos que seja por motivos bons.

Hoje não. Hoje estou aqui porque, por ser enfermeiro não estou imune a problemas de saúde. Nem eu, nem os que me são próximos. Eu que encaro, sempre que me é possível, o dia-a-dia, no trabalho, com um sorriso na cara, um carinho no toque e nas palavras e um abraço sempre preparado para quem pedir e premir esse gatilho no Ser Humano que teimo em ser, hoje estou a viver tudo do outro lado. O lado de quem é cuidado, de familiar.

Não tem sido um percurso de hoje, nem de ontem. Tem semanas e muito me tem ensinado. Aprendi que frases que dizemos no dia-a-dia com a melhor das intenções, não nos soam igual quando em vez de proferidas, são ouvidas. Quando a calma não se consegue só porque é aconselhada. Têm sido semanas de uma luta intensa, que bem como guerreiros de qualquer civilização antiga, dura dias inteiros – luta entre o Enfermeiro que sou e o familiar que não posso nunca deixar de ser. Momentos ganha o Mário familiar e tudo se complica mas tento que, sempre que possa, prevaleça o Mário enfermeiro, que tem a calma e a palavra que é precisa e esclarecedora para quem, ainda mais em pânico sente na pele o medo e as intervenções perante alterações na sua saúde.

Muito tenho aprendido com isto, muitas lições são ensinadas e os pensamentos que voam em redor de sitio nenhum trazem noções que não tinha. É estranho andar em corredores de hospital sem que seja com uma farda colocada, um cartão que abre portas e caras conhecidas, com sentido de onde se vai, de onde se vem e onde queremos ir. O poder que temos no dia-a-dia e não sabemos e notamos existe e só agora denoto isso. Somos referências para quem cuidamos e só agora percebo. Dá-me mais força e atenção para valorizar, ainda mais, as pessoas com quem cruzo, que cuido e os pequenos seres e suas famílias com quem tenho a honra de lidar e me cruzar todos os dias.

Não me irei estender mais, mas quero e preciso expressar que hoje, como presente, só peço que tudo corra bem naquela sala de cirurgia, que a recuperação seja a melhor e que muito em breve me seja permitido encontrar-te de novo saudável, ou pelo menos sem males maiores. De resto, para mim mesmo, que tudo isto seja uma lição apreendida e não me esqueça do que sou e principalmente para quem sou. Que a minha caixa pessoal de sorrisos, abraços, respeito, palavras, amor e carinho seja sujeita a um aumento significativo e que possam ser, cada vez mais, distribuídos de coração.

Carta para ti próprio, aniversariante ;)