Está
calmo. É noite e cá dentro passadas as portas de vidro, vive-se num mundo cuja
barreira não apenas física, mas principalmente psicológica, se altera. O ar
muda, fica à porta muito de nós, entra connosco o melhor que temos adicionando
a maior carga possível de boa energia. Por vezes, as nossas mochilas pessoais,
sacos térmicos e malas não permitem levar muito mais connosco, mas cá dentro,
na alma, cabe muito. Seja para levar o que temos, seja para trazer o que nos
dão.
Falo
e escrevo, na perspectiva de um profissional de saúde deste serviço. Já muitas
vezes se abriram as portas “a estranhos”, todos são bem-vindos, quando assim é
possível e quando o risco para os “nossos meninos” não se eleva perante os
benefícios dessas entradas. Contudo, apesar dessas visitas, só quem mora por cá
percebe o que escreverei, seja na perspectiva de doente, seja na perspectiva de
cuidador, formal ou informal.
Enquanto
cuidadores – pais, avós, tios, primos, amigos ou simplesmente pessoas de
referência – essa visão já foi, outrora descrita (e bem). Dessa forma, foi-nos
permitido entrar por meros minutos, na cabeça de quem tem um ser que ama a
percorrer um caminho moroso, sinuoso e, por vezes, nada previsível. Quero agora
mostrar através dos meus olhos, como vivo neste meu mundo, naquela que é
graciosa, e orgulhosamente, a minha segunda casa.
Escrevo
este texto após mais uma (longa) noite de trabalho. Como adjectivo que a
descreva, apenas usarei, para já, a palavra longa.
Fez-se
noite cedo neste dia de Inverno. Preparei-me para entrar no meu local de
trabalho. Vou de coração apertado, ansioso e receoso por entrar, pois o serviço
está cheio de crianças, de todas as idades, em várias fases de tratamento, com
diversas patologias e muitas delas, nossas conhecidas. Muitas com intuito
curativo, outras com um triste fim anunciado, onde o alívio de sintomas é a
prioridade principal.
Ao
chegarmos a este hospital a aura, por si só emanada pela sua existência e pelas
energias de quem ali trabalha e é cuidado, sente-se como se uma bolha de
humanismo nos pudesse invadir e não sabemos sequer de que direcção vem. A esta
hora, 22h, já pouco movimento se vê, os estabelecimentos de apoio estão a
fechar, os serviços de atendimento diurnos, responsáveis por receber grande
parte do movimento do instituto, há muito que encerraram, e as últimas visitas
dos pacientes, que teimosamente foram ficando, saem. Ficamos nós, que entramos
para o trabalho, e os que já estavam a cumprir o seu dever, sem falar no
principal oxigénio deste organismo, e que nos move, os doentes.
Após
dar entrada, passar pelo segurança e subir pelo elevador, dando os últimos
retoques e preparativos para entrar ao trabalho, chego ao 7º piso e, quer se
acredite ou não, é uma viagem demorada e, tantas vezes associada a uma viagem
de comboio urbano da linha de Sintra, onde as paragem são feitas em todas as
estações e apeadeiros, neste caso em particular, vulgarmente conhecidos por
pisos e serviços. Ao longo desta viagem, vão sendo recolhidos passageiros,
todos vestidos de branco ou azul, e distribuídos pelas suas “estações”. As
expressões emanadas pelos seus rostos são, desde sorrisos rasgados associados a
cumprimentos, até expressões de sono e distracção de quem deambula sob efeito
de “piloto automático”.
Chegamos
então, às tão aclamadas portas de vidro que selam aquele local misterioso. Não
podiam estar noutro local, no mais alto patamar do edifício e de frente para a
capela, onde as preces diárias de dezenas de pessoas, profissionais, pacientes
e familiares, são libertadas sob muitas formas, em busca de respostas, com o
coração carregado de energias e sentimentos ora bons, ora maus. Apenas em busca
de Alguém que os ouça, Alguém que os entenda, Alguém que lhes estenda a mão, e
lhes dê paz na alma.
Nós,
enfermeiros carregados de malas, mochilas, sacos e sacolas, como já referi,
levamos bens-pessoais, comida para várias possíveis refeições (como se nós
conseguíssemos ingerir sequer metade delas) e principalmente, levamos uma carga
que não nos ocupa espaço físico, mas pesa. E se pesa. Falo de emoções, de
expressões e de vontades, que inconscientemente escolhemos cuidadosamente para
levar connosco. Tudo isto passou hoje comigo, uma vez mais, por estas portas de
vidro.
Fardo-me
e bebo o meu primeiro café, o meu combustível físico para aguentar mais um
moroso turno da noite. Sento-me e olho em meu redor, vejo os meus colegas e não
me agrada o que me transmitem. Não preciso de ver uma gota de suor nos seus
rostos para ver o estado de exaustão, basta para isso ver as olheiras, o passo
apressado, o cabelo desgrenhado, a respiração ofegante e ver – falo de ver
realmente, com olhos e com o coração - as bancadas de trabalho e a mesa onde
nos reunimos 3 vezes por dia. Tenho em mim duas opções para o explicar: ou passou
um furacão ou foi uma tarde caótica de trabalho. Não questiono porque sei a
resposta: foi a segunda opção.
Olho
para a folha que tenho para receber o meu turno, escrever informações
importantes de quem vou cuidar. Vejo muitos nomes, nomeadamente sete (oito no
caso de outra colega), espalhados cuidadosamente numa folha A4, para que seja
possível escrever tudo o que importa, de todos e cada um. A folha tem muitos
nomes, o que por si só, determina que a minha ansiedade ao ir trabalhar, estava
certa. Não há espaço para reclamar, mas fazemo-lo: verbalizamos desagrado,
emitimos onomatopeias, lamurias, rimos em conjunto (como visível efeito da
ansiedade que nos levaria para um de dois caminhos: o choro ou o riso.
Escolhemos habitualmente o segundo, felizmente) e prosseguimos. Entre os que
saem muito depois da hora estabelecida e nós, que queremos e pretendemos
prosseguir os cuidados, gera-se uma fase inicial atribulada naquele nosso
espaço. Há pressa para chegar a todos aqueles que temos para cuidar, no tempo
que temos para o fazer, que nunca é suficiente. A sala de enfermagem, que se
pretende que contenha os momentos atribulados, os sentimentos adversos e sele a
passagem de tudo isso para o exterior, evitando transparecer para as crianças quaisquer
sentimentos negativos, acaba por não cumprir o seu papel e, entre tantas
entradas e saídas e o ranger da porta, é visível a ausência de calma e de uma
presente agitação.
Nesta
longa noite que passou, senti necessidade de escrever este texto e não o consegui
fazer, por falta de tempo para isso. Precisava de calma, de espaço e de tempo,
que não tive. Contudo, no escuro criei ideias para transpor, descrevi frases e
conceitos e organizei sentimentos.
As
primeiras horas são definidas como correria, avaliando sinais vitais, fazendo
dezenas de metros para observar as crianças e cumprir horários de medicação,
tentando enquanto enfermeiro responsável que quero ser, estar em 7 quartos no
mesmo exacto minuto para que os antibióticos (por exemplo) não falhem a sua
hora. Pois lamento transmitir que não consegui, o mundo dos super-heróis
ficcionais era o único que me permitiria cumprir isso. Contudo, sendo humano, a
velocidade que consigo atingir, é limitada. Falo e distingo o termo de super-heróis
ficcionais por uma razão, esses existem nas séries, livros e filmes que temos
acesso actualmente mas engane-se quem desacredita na existência de super-heróis
reais. Desses, tenho comigo no serviço 22, mais umas centenas em suas casas ou
lares temporários.
É
por eles que ali estou, por eles que ali estamos todos. Toda a equipa
multidisciplinar que ali exerce funções. Mas como enfermeiro que sou, a visão
que quero passar, e que me é possível, desculpem-me os restantes, é a da minha
profissão.
Somos
nós os elementos presentes 24 horas por dia, 7 dias por semana e 365 (ou 366)
dias por ano. Nesta noite, no silêncio destes corredores, fecho os olhos e
escuto. O corredor está vazio, isento de movimento a esta hora e a única coisa
que se vai alterando é o som de campainhas, o vermelho das mesmas reflectido no
chão lavável, nos vidros que dividem os dois corredores do serviço, ou
simplesmente as que não se repercutem nas lâmpadas das portas mas que sabemos
que, lá dentro, alguém chama por nós. Chamam por dores, náuseas ou vómitos, por
ter terminado alguma das mil medicações que administramos, porque a bateria de
alguma das suas máquinas terminou, para algum tipo apoio emocional ou, até
apenas, por engano. Já para não falar no resto da lista infinita de
possibilidades.
É
verdade, tocam a campainha e chamam-nos. Precisam e nós vamos, sem qualquer
problema. O que mais me apercebo, no entanto, é que pode estar a ser um turno mau
(em que, tal como os meus colegas do turno anterior, é notório o enorme
desespero por se sentirem incapazes de cumprir todas as obrigações no seu tempo
devido), mas dou por mim, a abrir cada porta, ir à minha mochila mental e
inconscientemente, coloco o meu melhor sorriso antes de dizer: “Boa noite! O
que aconteceu? Precisa de alguma coisa?”. Por muito cansado, por muito
frustrado comigo, por muitos problemas que tenhamos na vida, ali deixam de
existir, aquelas crianças levam-nos a um estado de transcendência que a mim,
enquanto enfermeiro, enquanto Mário, me dá um sentido à profissão e mais, me dá um
sentido enquanto pessoa!
Passam-se
horas em que as campainhas parecem combinadas entre si, em modo de melodia, e
lá nos dividimos entre o que podemos, para chegar a todos. Umas noites melhores
que outras e a calmaria não é proporcional ao número de crianças. Por vezes,
por uma questão de simples resolução, deslocamo-nos ao quarto de uma criança e
acabam por passar horas. Acontece porque o medo e as dúvidas dos pais se
multiplicam, porque a ligação que temos com essa criança é tal, em que
simplesmente a energia que também precisamos obter, é conseguida em tempo de
qualidade com ela, ou porque somos perfeccionistas e as coisas demoram a ser
feitas com pormenor.
Somos
humanos antes de seremos enfermeiros e como tal, a ligação que criamos com cada
criança, cada familiar, não é igual. Enquanto enfermeiros desempenhamos os
nossos cuidados de igual forma a todos, dando o nosso melhor, mas quando se
tratam de “ligações coração-coração” com famílias e pacientes, o caso é
diferente. Neste serviço, como disse no início, de crianças recém-nascidas a
adolescentes, qualquer que seja a razão, as ligações pessoais têm diferentes
intensidades e não se explicam. Somos humanos e somos sociais e tal como
qualquer adulto, estes pequenos enormes heróis escolhem-nos também eles, como
enfermeiros.
Um
turno como a noite, geralmente mais silencioso, passado num longo corredor
verde água, com paredes recheadas de brindes, oferecidos por ídolos dos mais
pequenos (desde jogadores de futebol a músicos e cantores, entre outros),
quadros e personagens ficcionais de animais, contrasta completamente com um
turno como a manhã ou tarde onde, esse mesmo corredor é inundado de vida. Onde,
se fecharmos os olhos, ouvimos conversas aleatórias de familiares que ali se conheceram
e se uniram como apoio nesta dura luta dos seus dependentes, profissionais que
passam com passos largos por todos, para chegarem a todo o lado, rodas de
suportes de soros (carinhosamente chamados, muitas vezes, por bobby’s) e de
triciclos, choro de crianças sujeitas a algum procedimento, por fome ou
simplesmente contrariadas na sua vontade. E vêem-se sorrisos e ouvem-se risos.
Muitos sorrisos se passam ali, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa.
As
crianças com cancro não passam a vida a chorar, não passam a vida deprimidas e
muito menos, abandonadas a um canto, sem família. Os sorrisos nunca são demais
e são constantes. Acreditem que a maioria dos sorrisos largados no meio destes
corredores e quartos é das crianças que ali estão, e não dos profissionais (e
olhem que nós temos muitos sorrisos para dar, e enormes! Em nome do melhor que
sabemos e do melhor lado que nos é exigido, por parte destes grandes e
maravilhosos seres).
Há
tanto para escrever sobre a forma como cuidamos, como damos de nós, como somos
recebidos nos braços e carinhos destas crianças, mas eu fiz noite e ainda não
dormi. Como referi aqui neste texto, sou humano e isso implica que o sono venha
e o cansaço acumule. Para, enquanto enfermeiro, cuidar de crianças com cancro,
não é preciso coragem, é preciso coração, é preciso amor. Não porque não o
tenham, mas porque o processo que têm de passar é complicado e atribulado e a
balança das emoções, tem de ser equilibrada. Para más energias já bastam as da
doença. Nós, enfermeiros, jogamos do lado da equipa das crianças, vamos à
baliza e vamos à frente, lado a lado com elas e com as famílias, porque disso
depende o preço da nossa alma e da nossa consciência humana.
Quando
acharem que para lá daquelas portas de vidro automáticas, mora apenas pesar e
dor, acreditem que num pequeno enfermeiro, mora amor. Moram sorrisos e o choro,
esse, mora quando o amor magoa e faz às crianças aquilo que, neste processo,
vai sendo exigindo. Como qualquer guerra, não se vence sem várias batalhas.
Batalhas
essas, que também as perdemos e nem tudo é colorido, é um facto. Resta-nos usar
as armas que temos, os dois braços que possuímos e a boca ligada à alma e ao
coração, para dar um abraço, ceder um ombro e seja com palavras, ou com
silêncio apoiar o processo que é uma das maiores lutas da humanidade: a perda
de alguém que se ama. Não somos de ferro, nem tampouco de pedra mas somos
profissionais capazes de soldar emoções, chorar lágrimas doces ou salgadas e
criar muros para proteger, como melhor for possível, aqueles que cuidamos.
Daqui,
um enfermeiro do Serviço de Pediatria do IPO. Daí, espero que uma alma, aberta
a uma nova visão do lado de cá daquelas portas de vidro.
Imagens retiradas do google.