sexta-feira, 2 de junho de 2017

J.R. - A História de Um Guerreiro Açoreano

“És o meu enfermeiro preferido”- disse-me, enquanto a sua mão me guiava pelo corredor, até ao quarto, onde me queria mostrar um filme de animação. Nesse momento o meu corpo deixou o estado sólido e evaporou, ao mesmo tempo que instantaneamente, esbocei um largo sorriso. Pelo menos, na minha mente, por breves momentos, esqueci-me que era enfermeiro. Digo isto porque só não percebe o que quero dizer, quem nunca sentiu um abraço sincero e caloroso de uma criança, quem nunca foi presenteado com frases como aquela com que iniciei o texto. O mundo ganha outra energia, o vento mostra toda a vida e cor que tem e o tempo que é certo, deixa de o ser.
Esta é a história de um ser especial. Herói como todos aqueles de quem cuido, mas a ti, J., tenho a agradecer, porque mostraste-me uma vez mais, o que é ser humano.
Escrevo este texto porque preciso de dizer ao mundo, que estes seres de quem cuido no dia-a-dia, são capazes de mover montanhas e o serviço é, efectivamente um mundo especial, onde as regras formais da escola de enfermagem, por vezes, são postas a prova.



Escolhi este pequeno herói para falar porque a mim, me tocou e toca particularmente e mostra que nós, enfermeiros da pediatria do IPO, amamos o que fazemos, cuidamos com paixão de cada criança mas os vínculos criados são particulares e eles também nos “escolhem”, e dizem-no da forma que melhor sabem: com honestidade e frontalidade.
Deste “meia-leca” lembro-me, como se fosse hoje, do dia em que chegou. Ou melhor, da noite. Era Inverno e após uma viagem urgente de avião, chegaste ao serviço em pânico, a chorar imenso e renitente a toda a gente que não fosse a tua mãe e a irmã mais velha. Eu estava ao computador na sala ao lado e nem te vi. Ouvi do lado de lá da porta o aparato e a colega que te recebeu lá explicou o que já percebera: vinhas desesperado e com medo.
Passaram 4 longos meses de luta, com lágrimas e sorrisos, altos e baixos mas sempre a batalhar. Tudo percurso desta maldita doença que te atingiu e trouxe para a capital.



Hoje vejo-te regressar a casa, onde pertences e onde tu e a tua família mais necessitam de estar e estabilizar: o teu lar. Estou radiante pelas boas notícias associadas ao teu tratamento mas mentiria se dissesse que, parte de mim, não estaria triste. Não é fácil encontrar um fornecedor de abraços como tu, com a força e poder de fazer parar o mundo e de nos fazer lembrar, que durante as noites escuras, também há luz e os furacões, que são a doença oncológica, podem passar a ser apenas vento.
Descobri também, contigo, que ser Enfermeiro neste serviço, que é a Pediatria do IPO de Lisboa, não é ser enfermeiro como em qualquer outro lado. E acredita que tentei. Não há escudo que resistisse a tua forma de lidar comigo. Aprendi na escola a manter uma postura profissional. Ao cuidar com entrega mas eticamente manter valores e a vida pessoal distante do meu meio de trabalho. Pois lamento informar-te a ti, a quem estará a ler isto e com quem trabalho mas, falhei. Falhei redondamente enquanto profissional e assumo isso.
Mas se me perguntares se me arrependo? A resposta é: NUNCA.
Fiz o que sei de melhor, cuidei de ti enquanto enfermeiro mas, o meu lado de Mário, o humano, não ficou indiferente ao miúdo que és. Admiro-te, pela criança que és, pela capacidade de pores todos ligados à tua vivacidade e ninguém com quem lidas, te fica indiferente, sejam eles enfermeiros, médicos, assistentes operacionais, crianças e familiares, pessoas da residência, etc., etc., etc.
Preciso e quero dizer ao mundo que estes miúdos não são crianças, não são adolescentes. São pequenos grandes focos de energia. Parecem frágeis? Fisicamente têm limitações sim mas experimentem passar uma hora com qualquer um deles. Não são todos iguais certamente e não permitem, como qualquer outra criança/adolescente, que as pessoas entrem “na sua bolha”, mas acreditem em mim, são cativantes só por existirem. Mas cuidado, como dissera Antoine de Saint-Exupéry, na sua brilhante obra “O Principezinho”: “Somos responsáveis pelo que cativamos”.
E é por me sentir responsável por te ter cativado e isso ser mútuo, que pedi a tua mãe, J., a autorização para escrever sobre ti, sobre um pouco do que és, e por publicar algumas das fotos que, gentilmente quiseste tirar antes da tua partida para casa.   



Desejo-te o melhor do mundo, que a tua ida seja abençoada e que um dia te reencontre, nas melhores condições possíveis e com o sorriso igual aquele que sempre me/nos habituas-te. Serei sempre o Enfermeiro Mário do IPO, e que as memórias que permaneçam nessa mente, relativas a esta “estadia” na capital, sejam as melhores. As menos boas, e que fizeram parte do “teu caminho”, existirão, mas irás aprender que há “baús” na mente onde elas deverão ser arrumadas para não incomodar.
Muito obrigado por existires, muito obrigado pelo teu presente, que apesar de tudo, em nada se comparará à força dos teus abraços e das tuas honestas palavras, mas servirá para ter algo físico a lembrar-me que nesta profissão passam por nós pessoas memoráveis, que tenham a idade que tiverem, nos deixam um pouco de si e ganham um pouco de nós. Ganham um grande lugar no coração. Quero ir sabendo de ti e essa é a vossa missão família do J. Parabéns pelo filho, irmão, neto, sobrinho e afilhado que têm e por, uma vez mais mostrarem ao mundo que a união de uma família faz diferença na luta contra o cancro.
Daqui, o enfermeiro que honestamente assume que foi mais pessoa que enfermeiro nesta balança que é cuidar.

Mário Lopes.

P.S.: Muito poderia ainda escrever acerca desta história e pretendo fazê-lo, noutras circunstâncias, e a seu tempo. Para já, contemos que isto tenha servido apenas como resumo e, de momento, J., família e eu, teremos na mente aquilo que mais nos deixa ricos na vida: memórias.