sábado, 26 de agosto de 2017

Quando o final nem sempre é feliz mas há personagens essenciais no percurso

Algum tempo de ausência na escrita, eu assumo. Escrevo tanto na mente mas, passar para o mundo partilhável vai sendo complicado, por questões de disponibilidade ou, principalmente, por não saber de que forma transformar o que sinto, em algo escrito e perceptível para quem possa, eventualmente, querer ler.

Tenho escrito os últimos textos acerca do meu serviço, do que de brilhante ali se faz pelo bem dos que cuidamos e até de histórias felizes e concretas. Nem sempre é assim. Gostava de escrever e dedicar um pouco do meu espaço, deste meu canto, a cada um dos que tenho “perdido”, dos que TODOS, temos “perdido”. Não perco apenas eu como pessoa e enfermeiro, não “Tu” que estarás a ler este texto, nem sequer os pais ou familiares. Perde o Mundo em que vivemos, pela grandiosidade e essência de que cada ser que ali passa. 
Existem batalhas duras é verdade, existem guerras que são vencidas e existem outras em que, infelizmente, não há finais felizes. Este é um facto.

Gostaria de homenagear cada um dos heróis que perdemos mas não conseguiria fazê-lo em espaço tão limitado, o que seria injusto para com aqueles que mereciam o mundo e, por alguma razão, o “monstro” levou o melhor. O que esse monstro não contava é que, no cérebro humano, há capacidade para manter vivo quem nos é mais querido, quem nos marca de alguma forma e, por essa via acreditem: essas crianças de que falo, vivem para sempre.
Não exagero quando o digo. Passam dias, meses ou até anos e a verdade é que cada criança é lembrada e falada tantas vezes, entre nós profissionais, que não é possível pensar que algum dia serão esquecidas. Não há local que conheça, e tenha trabalhado, onde cada paciente é tratado sempre pelo nome e se conhecem (quase) todos os casos e histórias daqueles com quem contactamos. Quer sejam histórias com final feliz, ou não. 

Por aqui, passe o tempo que passar, estejamos presentes no momento ou saibamos apenas depois, a partida das crianças que cuidamos torna-se sempre difícil. E talvez por essa razão, por ter perdido nos últimos tempos mais crianças do que pensaria, me tem sido difícil escrever. Só nos últimos tempos vi partir a princesa Elsa, o Super-Homem e a Gatinha. Não falarei obviamente em nomes, mas também tenho a certeza que eles, tal como quem com eles teve o privilégio de privar, saberá a quem me refiro. São o exemplo que o destino, se é que ele existe, é imprevisível. Que os poderes que temos ao nosso alcance, são maiores do que calculamos mas, nem mesmo eles, nos garantem sucesso nas nossas lutas. Mas a maior lição que vos posso passar da história comum destes 3 pequenos grandes seres, é que a luta não foi facilitada por parte deles. A luta durou meses a anos e a garra foi contínua, contudo nas guerras, o campo de batalha nem sempre nos é favorável e os heróis nem sempre têm o final feliz que idealizamos. O nosso papel nestas lutas, é garantir que jamais seja uma guerra em vão, que mesmo quando há uma derrota, sejam lembrados os mais bravos do quartel e do pelotão. Este é o papel do meu texto.

Quero lembrar-vos e dizer-vos que me foi tão duro ver-vos perder esta guerra. Que vi e assisti a um percurso cheio de suor e lágrimas, quer vossas quer dos vossos pais e familiares. Tenho na mente frases e brincadeiras vossas que não me esquecerei e garanto que, certamente, ninguém com quem privaram se esquecerá. Ensinaram toda a gente o que é, uma vez mais, o amor e a garra de lutar pelo que se quer, mesmo sem saberem, provavelmente que o estavam a fazer.

Princesa Elsa a ti quero apenas dizer que foi uma honra ter usado o teu gorro da trança, mesmo sem saber que era teu! E a tua cara de felicidade quando to devolvi, achando tu que ele se tinha perdido. No inicio sempre tão difícil de nos permitires chegar a ti, até que o teu lado carinhoso prevaleceu e nos permitiste fazer parte da tua vida. Apesar disso quase que levei com “uma cavala na cabeça” por te provocar em tom de brincadeira e não me vou esquecer disso e das gargalhadas de todos na sala. Sempre que ouço a música do filme é inevitável vires à minha mente, pelo que é mais uma garantia tua para que nunca te esqueça!




Super-homem, este é e será o teu nome. Não arriscaria voltar a tentar dizer a tua identificação secreta, que as pessoas teimam em chamar de nome, pois sei que já não o querias usar. A tua identidade será mantida e sempre que vir o super-homem sei quem estará por detrás daquela capa!

Gatinha, a ti quero dizer-te que muitas são as memórias que guardo de momentos contigo, dos miares e das pinturas das minhas mãos! Se essa era a forma de conseguir a tua atenção, pois que assim fosse. Lembro-me da forma adulta e, ao mesmo tempo carinhosa, com que falavas e olhavas, desde o dia que te conheci,até ao dia em que partiste. Não esquecerei ainda os abraços apertados e sinceros. Obrigado pela honra de me teres “autografado” a mão.



Tantos são os que chegam, alguns são os que acabam por partir mas acreditem que todos, sem excepção, são lembrados e à sua maneira vão deixando em nós a sua marca. Como já outrora disse, são crianças e, como tal, são puros e gostam e ligam-se mais a uns enfermeiros que a outros. E isso é o mais natural, contudo marcam toda a gente de forma transcendente pelas suas particularidades.
Por tudo isto, com todas as vitórias e derrotas com que somos confrontados, reforço que é uma honra poder conhecer cada uma destas crianças e, tal como já falei com uma grande amiga e colega deste serviço: No dia em que a morte de uma criança não me marcar e seja isenta de sentimento, estará na hora de mudar de rumo, pois nada mais fará sentido. Recuso acreditar que com o tempo será "menos penoso". Até lá, mesmo com o risco sempre iminente de perda, estou onde sempre quis estar e onde, enquanto enfermeiro e pessoa, a minha vida faz mais sentido. Obrigado por me ensinarem diariamente, a ser o que sou.

E não posso é contudo esquecer outras pessoas que são tão essenciais durante todo este processo: os pais ou quaisquer outros familiares ou cuidadores que cada criança tem.
Isto porque hoje, houve um episódio tão puro e peculiar a que assisti e ficou gravado na minha mente e passo a descrever:
- “Eu não te mereço” – Diz a mãe à filha;
- “porque não me mereces?” – pergunta, surpresa, a filha (a referir que é uma criança em idade pré-escolar);
- “Porque és boa demais para mim!” – Responde a mãe em jeito de conclusão.

Foi um momento único, que culminou com um beijo da mãe na testa da filha. Em mim senti cada palavra e emocionou-me. Impossível não me arrepiar.

Ali, as crianças mostram ser muito mais do que aquilo que eram. Deixam de ser “apenas crianças”. Se cada criança do mundo é especial, ali há uma transcendência desta definição. São obrigadas a ser o seu melhor. Os pais, que já as amam, dão de si mais do que algum pai pensaria ter de dar e isso é visível. Esgotam a sua energia, dormem mal (quando dormem), não comem como deveriam, as rotinas de vida e, até as orgânicas alteram. Tudo pelo alívio de qualquer sinal ou sintoma nos seus filhos. E ainda acham, no fim, que não os merecem porque eles são bons demais.
E são. São demasiado bons e especiais mas pais: vocês merecem os filhos extraordinários que têm. Se eles, que lutam contra uma doença com a qual nunca deveriam ter de lutar, vocês são as armas deles, são os cavalos que os transportam na guerra, são a cama onde eles repousam, são a comida que os alimenta, são a motivação para se manterem de pé e caminhar e são, aquando das derrotas, quem se encarrega de honrar as suas maiores vitórias! Por tudo isto não se desvalorizem.

Se passando no corredor nos centramos nas crianças, se nos cuidados focamos nelas as necessidades, não é menos notória a vossa presença. Reparo muitas vezes nas vossas faces, às portas dos quartos a ver o tempo passar e ele não colabora. Vejo tantas vezes as vossas olheiras marcadas, indicando que o sono se tornou um luxo para apenas alguns. Vejo-vos deslocarem-se ao WC realizar cuidados de higiene pessoal, sempre à pressa, aproveitando pequenas sestas ou momentos em que alguém pode tomar conta dos vossos filhos. Vejo-vos solicitar pacientemente na copa a comida para as crianças, mesmo quando sabem que ingerirem uma ou duas colheres do que eles próprios pedem, já será uma vitória. Vejo-vos, quando vos é possível, na varanda, a simplesmente respirar ar do exterior, e tirar os 5 ou 10 minutos que é possível para vocês.
E mesmo depois de tudo isto ainda vejo, sem saber como, tantos de vocês sempre dispostos a esboçar um sorriso aos profissionais ou quem vos visita, adicionado a uma ou outra brincadeira.
Por tudo isto, não se esqueçam: Vocês são tão heróis como os vossos filhos. É aqui, nestes momentos, que a palavra amor é tão evidente. Se o amor não é palpável, aqui ele é tão visível.

Em cada quarto, em cada cama deste serviço há uma história de vida. Há crianças dos mais variados países, distritos, localidade. Cada uma tem história e qualquer que seja a língua ou dialecto, qualquer que seja o género ou cor da pele, a idade ou personalidade, há algo que é evidente em quem ali está: o amor.

Em jeito de conclusão ouvi há pouco tempo uma frase que fez todo o sentido: “Uma árvore sem raízes é apenas um pedaço de madeira”. E aqui, neste serviço onde trabalho não poderia ter melhor comparação, pois estes seres maravilhosos, sem as suas origens, sem aqueles que os mantêm vivos e os “seguram” seriam simplesmente, crianças “vazias”.