terça-feira, 18 de junho de 2019

O regresso


Passa pouco das 20h. Lá fora daquelas portas ficou um dia cheio e, após chegar ao aconchego do lar, no silêncio e no escuro em que me coloquei, senti que estava na altura de mais um texto. No meio de um turbilhão de ideias e vontades, toda a mente me impeliu a pegar no computador e expulsar palavras para fora.
Passou um longo “jejum” desde a última vez que escrevi. Peço desculpa a todos aqueles que, ao longo deste tempo, me foram pedindo para escrever mas realmente o tempo passou sem que me debruçasse sobre um  texto concreto. Não foi por falta de episódios da vida preenchida de enfermeiro, nem de histórias boas e más que me levassem a escrever, mas porque simplesmente a minha escrita é feita na sua grande maioria na minha mente e, para o papel ou página de computador, sai apenas uma pequena parte. Hoje resolvi que estava na altura de largar algo para o mundo visível.

Acontece que há alturas da vida onde tudo é feito de dúvidas, onde não há dias em que não se saia de casa rodeado de perguntas, e se chegue atolado num lodo de incertezas. Nos meus poucos (alguns) anos de existência vivi alguns períodos assim, onde o caminho teima em estar ofuscado de neblina. Muito pelo cansaço físico e, principalmente, mental com que somos assolados. É inevitável que assim seja quando se tem uma profissão como a que escolhi, onde não é fácil "escondermo-nos" dos acontecimentos, mesmo em folgas ou férias. Mesmo nestas alturas gosto e faço questão de viver as vitórias e ter conhecimento das mais lamentáveis perdas.
Neste período de ausência da minha parte, como atrás referi, não faltaram razões boas e menos boas que me fizessem desejar ou precisar de escrever mas na altura não o fiz e encontrei o abrigo e o apoio junto da família e dos pares, daqueles que na vida pessoal e também profissional, se mostram incansáveis no apoio e, principalmente, na sua capacidade de ouvir e nunca deixam o silêncio ser demasiado doloroso.
E até podia dizer que é fácil. Podia dizer que nunca pensei desistir. Podia até dizer que sou sempre feliz e cheio de certezas.
Mas é mentira.
Assumo que as dúvidas, por vezes me assolam e que o medo me congela mais vezes do que gostaria, mas continuo sempre na certeza que estas dificuldades fazem parte do percurso.
Por vezes, aqui em casa, ou até no trabalho, percebemos que os percursos em que seguimos são de sentido único. Há “estradas secundárias”, e até “trilhos” mas o rumo, esse, é de sentido único no que toca a onde teremos que chegar.
“Nada é ao acaso”, digo eu tantas vezes. Quero acreditar que as razões, mesmo com as minhas escolhas, me levam a eventos, locais e pessoas com quem me teria de cruzar. Saímos sempre mais ricos e com certeza que apenas nunca poderemos voltar atrás. Podemos corrigir erros, pedir desculpa, ou até desvalorizar, mas o que foi dito, visitado ou vivido, não pode ser apagado ou esquecido. Aceitemos que somos tudo e somos nada. O que foi passado seguiu mas deixou algo para nos marcar e ensinar.
Hoje tenho a certeza que, mesmo com as dúvidas, medos e incertezas estou e estava onde tinha de estar. Posso não estar em todo o lado que gostaria, mas estou certamente onde sou preciso. Podiam estar outros e fazer o mesmo mas la está: nada é ao acaso.
Quando uma criança ou jovem te diz o que vai na alma, te faz perceber que se criam laços contigo e que estes ajudam a ultrapassar este maldito e penoso percurso para a cura, então aí percebes que seja dia ou noite, a tua profissão é realmente importante e tu, fazes alguma falta.
Neste serviço aprende-se muito. Não tanto sobre o que se faz, mas sim a quem se faz, de quem se cuida. Por aqui passam filhos e os seus pais (de sangue ou coração), tios e outros familiares e amigos de quem mais sofre com estas doenças. Passam e ficam, mesmo quando vão! Ninguém aqui passa sem deixar nada e ninguém sai ser levar algo consigo. Somos o que damos e tudo aquilo que recebemos.

Quando se trabalha em locais onde nada é justo (caso contrário não existiriam) mas se tem a honra de conhecer o melhor da humanidade, na face e acções de cada criança, existem momentos que ficam gravados na nossa mente como se em pedra se tratasse e tu sabes que és um abençoado por cuidares dos melhores do mundo. O coração acelera e os olhos choram quando uma criança pequena, sabe que está doente, que tem de fazer algo doloroso para o ajudar e, mesmo assim, diz para o médico, após este realizar o procedimento, algo como:

“Dr. portei-me bem? Dormi? Mas não me mexi pois não? Então portei-me bem?
Obrigado! Obrigado por tudo! Ah e Dr., quando fores mais velho, se precisares de pôr um cateter não tenhas medo, não dói! Metem-te a dormir e sentes só uma piquinha mas não dói! Não tenhas medo!
E como te chamas? E tu Dr.ª? E tu enfermeiro e enfermeira? Mãe aponta aí os nomes todos porque quero depois pedir uma foto para pôr no meu álbum!”. 

Ou quando uma criança de 3/4 anos sabe dizer aquilo que tem e te diz que "na barriga tenho uma massa", a mãe diz "pois é mas tu até sabes o nome não sabes?" e ela olha para mim e diz "sim, é um tumor!". Desengane-se quem acha que isto foi dito com lágrimas, ou com medo. Em mim, levou a um calafrio na pele, mas na face daquela criança e daquela família, só vi a certeza que darão toda a luta que estiver ao seu alcance para ultrapassar tudo isto. Como não "vestir a armadura", "empunhar a nossa melhor arma" e juntar-mo-nos a esta luta?  
As crianças ali podem não ser feitas de pedra nem de aço, e passar por percursos complicados, ter doenças que jamais deveriam conhecer, mas fica a certeza que o significado de Vida e Amor têm, certamente, uma outra dimensão.


Resumindo, haja o que houver, custe o que custar, somos felizes a fazer o que fazemos, porque tratamos da melhor forma possível, os melhores e as suas famílias. Às vezes apetece desistir, apetece pegar em nós e “mudar de estrada” mas há algo que nos segura, que nos motiva e nos mostra aquilo que é importante.
Quem nunca: cuidou de outro; passou horas à conversa com os seus doentes e famílias (de conversas acerca de tudo o que é possível); recebeu um abraço sentido de uma criança; ouviu o seu nome sair da boca de uma criança com a felicidade por te ver; viu uma criança adormecer enquanto lhe dás a mão e lhe afagas o cabelo; recebeu desenhos, pinturas, crachás, gorros mágicos especiais ou outros miminhos; etc; jamais saberá o que é ser feliz. 
Posso morrer hoje, amanhã ou depois mas levarei a certeza que dei e dou o meu melhor ao mundo e a estas crianças de quem cuido mas ele, em troca também já me deu das melhores coisas que podia ter direito e o prazer de sentir e contactar.
Contudo muito ainda existe para atingir. Há tantos sonhos a aguardar e tanta coisa que o coração pede. Falta apenas o mundo, o tempo e a sorte colaborarem em uníssono e assim o permitirem!
Que jamais se baixe os braços, porque nada é fácil e, por muito que hajam dias difíceis, onde tudo nos leva a querer desistir, vem algo que, como uma grua, nos iça para um local seguro e nos mostra com toda a certeza que ainda estamos no lugar correcto.
Apesar de tudo há profissões que penso não serem para sempre. Não podem ser por diversas razões. E esta, a minha, penso ser uma delas pois a nossa energia e capacidade de entrega vai sendo limada e os tempos de descanso não são suficientes para recuperar de todas as mazelas. Mas vamos dando o melhor, fazendo o possível e impossível para que a quem mais merece, nada falte, e no dia que a energia faltar, o caminho terá de ser dado a outro, para continuar a fazer o que é preciso ser feito! Até lá a bagagem de histórias, de conhecimento, de humanidade e de amor por quem cuidamos não pára de crescer. Nunca pensei que no coração humano fosse possível colocar tanta gente, guardar tantos e bons momentos mas espero que ele e a mente nunca me falhem, pois neste “álbum pessoal” já levo comigo muita gente especial e que jamais quero esquecer.

O Enfermeiro Mário