quinta-feira, 19 de abril de 2018

As mãos de um enfermeiro


A vida é feita de episódios, de momentos consecutivos, definidos por unidades cronológicas mas vividos a velocidades e marcas próprias de cada um. É esta a razão pela qual, algum momento que nos enche de alegria, parece durar segundos e aquele momento enfadonho que nos custa a presenciar, demora uma verdadeira eternidade. Somos seres de lembranças, onde esses episódios atrás definidos nos ficam marcados na memória tal como, fisicamente, existem as fotografias. Tal como estas, existem uns desfocados, que ocorreram mas apenas ficou um resquício daquilo que aconteceu, e uns bem definidos e, passe o tempo que passar, nos estarão eternamente presentes, como acabados de acontecer. A diferença é que, ao contrário das fotografias, onde em duas dimensões apenas, temos marcado determinado segundo, associamos nas memórias: um determinado cheiro, textura, som ou até paladar.
É isto que nós, humanos, não percebemos ser tão valioso. Nascemos “em branco”, apenas com reflexos necessários à nossa sobrevivência, mas com o avançar do tempo (aquele que definimos como marca cronológica para estabelecer determinado período) vamos arquivando em nós mesmos, cada aprendizagem e memória, preenchendo o gigantesco caderno de memórias, com rabiscos, histórias, fotos, apontamentos e até folhas rasgadas, que mostram o percurso pessoal de cada um.
Ao longo da vida fazem-se escolhas e essas trazem-nos consequências, quer boas, quer más. Somos aquilo que passámos e seremos ainda mais, depois de vividos e guardados os percursos futuros. Não somos mais por ter mais ou melhor, somos os mesmos, com o mesmo valor, mesmo que “os cadernos pessoais” estejam mais ou menos preenchidos. É por isto que a vida humana vale o mesmo tenhas tu uma folha, ou uma biblioteca de livros naquela que será sempre “a tua estante”.
A tua “estante” de memórias encerra, em ti e, caso não pretendas partilhar com mais alguém, todo o percurso, os sonhos e os trilhos que viveste. Resumidamente, é o teu passado. Esse mesmo passado é a explicação do teu presente e a causa das decisões do teu futuro.
Após o meu percurso, uma das minhas escolhas passou por ser enfermeiro. Podia e queria ter sido outras coisas até esta decisão mas, no final, vários factores confluíram para esta mesma escolha. Cresci a perceber que teria de lutar para atingir os meus sonhos e quaisquer opções que fizesse na vida. Assim foi.
Mas se na mente guardamos memórias, fisicamente estas também são possíveis de ver.
E, com isto, quero apresentar-vos as minhas mãos:






Não são mãos calejadas. Não são mãos sujas e marcadas pelo trabalho na agricultura ou numa oficina, por exemplo. E antes de poder ser mal interpretado informo já que, de forma alguma, esta minha frase anterior é de desdém ou desrespeito pelos profissionais dessas áreas. Tenho família e amigos em ambos os ramos e o orgulho neles é imenso. Posso ainda acrescentar que não falo "da boca para fora" porque, até hoje, a minha educação permitiu-me perceber o quão duro pode ser a vida em algumas profissões. 
Os meus pais, de quem tenho o maior orgulho do mundo, trabalham há anos, durante muitas horas por dia, em algo que conheço de perto: a área do comércio. Esta mesma área, nomeadamente, supermercado e talho, foram as áreas que me permitiram sonhar com o meu presente, que me pagaram os estudos, me deram os brinquedos, a roupa e a comida na mesa, os meus pequenos luxos, a primeira viagem e o início da minha independência. Vejo e reconheço, mesmo que não o diga, o esforço que os meus pais fazem e sempre fizeram para eu e o meu irmão termos o melhor possível. O meu orgulho por eles é do tamanho do mundo e eles sabe-lo-ão. Mas, aprendi ao trabalhar com eles, que aquilo era o que não queria para mim. Aquela área nunca me faria sentir concretizado. E lutei para ser o que sou hoje e estar onde estou agora.
As mãos que acima vos mostro podem não ter calos. Podem não ter óleo, vestígios de terra ou de tinta. Mas essas mãos que vêm, em 30 anos de vida já cortaram carne num talho, já arrumaram prateleiras num supermercado, já apanharam batatas num campo, transportaram muito cimento, areia e pedra e já andaram na apanha da fruta. Tudo isto no passado, onde deixou as memórias, o valor do que é lutar e ajudar quando é preciso. Mas essas mãos, sem marcas fisicas evidentes, normalmente associadas a “trabalho duro”, são minhas. São de um enfermeiro.
Muitas pessoas que não percebem minimamente o valor da minha profissão diriam que são mãos de quem nunca soube o que era trabalhar a sério (como já ouvira antes da minha escolha de profissão), contudo saibam que estas mãos, sem “calos”, são mãos que: pegaram em bebés recém-nascidos e lhes prestaram os cuidados iniciais de vida; já cuidaram de crianças que nasceram antes da data prevista e nem condições tinham para sobreviver sem ajuda extra; já deram banho e trocaram fraldas a doentes cuja dignidade está dependente da possibilidade de serem ajudados por outros (desde bebés com 28 semanas de gestação a idosos com mais de 100 honrosos anos neste planeta); já alimentaram crianças e idosos; agarraram a mãos de desconhecidos quando estes deram o último suspiro e cuidaram dos seus corpos isentos de vida; limparam feridas; procuraram a cura e procuraram oferecer dignidade na vida e também na morte de crianças (desde bebés a adolescentes), adultos e idosos.
Resumindo, as mãos de um enfermeiro podem não ter calos mas não significa que o trabalho que exerçam seja menos "duro". Nós, enfermeiros, cuidamos de seres humanos da melhor forma que sabemos. Cuidamos de recém-nascidos, sejam prematuros ou não, crianças, adultos ou idosos, aquando de estados de saúde ou de doença. As mãos de um enfermeiro são um veículo para a dignidade do doente. Há muito mais no trabalho de um enfermeiro do que aquele que parece à primeira vista e é pena nem sempre ser reconhecido mas, o importante a reter é que não devemos julgar as mãos de um estranho. Pode não ter sinais evidentes de um trabalho árduo mas as mãos isentas de calos podem estar associadas a uma mente rica em momentos poderosos e pertencerem a alguém cujo coração é dedicado a cuidar de quem mais precisa.
Sei que os textos não passam disso, palavras escritas tornadas em frases mais complexas mas, se este texto chegou a ti de alguma forma, faz-me um favor: Lê, reflecte e da próxima vez que vires um enfermeiro lembra-te que, para estar onde está, abdicou de muita coisa para ajudar os outros e não critiques a sua formação nem o seu caminho. Muitos enfermeiros não o são porque não conseguiram ser médicos, não o são porque só limpam dejectos e trocam fraldas, não o são para fazer pensos, etc. Os Enfermeiros são Enfermeiros porque estão dispostos a abdicar de muita coisa para ajudar os outros e, se lutam por melhores condições (ordenados, horários e direitos), é porque, no seu trabalho, procuram dar também, as melhores condições a quem cuidam. Não julgues, respeita!