A vida é feita de episódios, de momentos consecutivos,
definidos por unidades cronológicas mas vividos a velocidades e marcas próprias
de cada um. É esta a razão pela qual, algum momento que nos enche de alegria,
parece durar segundos e aquele momento enfadonho que nos custa a presenciar,
demora uma verdadeira eternidade. Somos seres de lembranças, onde esses
episódios atrás definidos nos ficam marcados na memória tal como, fisicamente, existem as fotografias. Tal como estas, existem uns desfocados, que ocorreram mas apenas
ficou um resquício daquilo que aconteceu, e uns bem definidos e, passe o tempo
que passar, nos estarão eternamente presentes, como acabados de acontecer. A
diferença é que, ao contrário das fotografias, onde em duas dimensões apenas,
temos marcado determinado segundo, associamos nas memórias: um determinado
cheiro, textura, som ou até paladar.
É isto que nós, humanos, não percebemos ser tão valioso.
Nascemos “em branco”, apenas com reflexos necessários à nossa sobrevivência,
mas com o avançar do tempo (aquele que definimos como marca cronológica para
estabelecer determinado período) vamos arquivando em nós mesmos, cada aprendizagem
e memória, preenchendo o gigantesco caderno de memórias, com rabiscos,
histórias, fotos, apontamentos e até folhas rasgadas, que mostram o percurso
pessoal de cada um.
Ao longo da vida fazem-se escolhas e essas trazem-nos
consequências, quer boas, quer más. Somos aquilo que passámos e seremos ainda
mais, depois de vividos e guardados os percursos futuros. Não somos mais por ter
mais ou melhor, somos os mesmos, com o mesmo valor, mesmo que “os cadernos
pessoais” estejam mais ou menos preenchidos. É por isto que a vida humana vale
o mesmo tenhas tu uma folha, ou uma biblioteca de livros naquela que será
sempre “a tua estante”.
A tua “estante” de memórias encerra, em ti e, caso não
pretendas partilhar com mais alguém, todo o percurso, os sonhos e os trilhos
que viveste. Resumidamente, é o teu passado. Esse mesmo passado é a explicação
do teu presente e a causa das decisões do teu futuro.
Após o meu percurso, uma das minhas escolhas passou por ser
enfermeiro. Podia e queria ter sido outras coisas até esta decisão mas, no
final, vários factores confluíram para esta mesma escolha. Cresci a perceber
que teria de lutar para atingir os meus sonhos e quaisquer opções que fizesse
na vida. Assim foi.
Mas se na mente guardamos memórias, fisicamente estas também
são possíveis de ver.
E, com isto, quero apresentar-vos as minhas mãos:
Não são mãos calejadas. Não são mãos sujas e marcadas pelo
trabalho na agricultura ou numa oficina, por exemplo. E antes de poder ser mal
interpretado informo já que, de forma alguma, esta minha frase anterior é de
desdém ou desrespeito pelos profissionais dessas áreas. Tenho família e amigos
em ambos os ramos e o orgulho neles é imenso. Posso ainda acrescentar que não falo "da boca para fora" porque, até hoje, a minha educação permitiu-me perceber o quão duro pode
ser a vida em algumas profissões.
Os meus pais, de quem tenho o maior orgulho
do mundo, trabalham há anos, durante muitas horas por dia, em algo que conheço
de perto: a área do comércio. Esta mesma área, nomeadamente, supermercado e
talho, foram as áreas que me permitiram sonhar com o meu presente, que me
pagaram os estudos, me deram os brinquedos, a roupa e a comida na mesa, os meus
pequenos luxos, a primeira viagem e o início da minha independência. Vejo e
reconheço, mesmo que não o diga, o esforço que os meus pais fazem e sempre
fizeram para eu e o meu irmão termos o melhor possível. O meu orgulho por eles é do
tamanho do mundo e eles sabe-lo-ão. Mas, aprendi ao trabalhar com eles, que
aquilo era o que não queria para mim. Aquela área nunca me faria sentir concretizado. E
lutei para ser o que sou hoje e estar onde estou agora.
As mãos que acima vos mostro podem não ter calos. Podem não
ter óleo, vestígios de terra ou de tinta. Mas essas mãos que vêm, em 30 anos de
vida já cortaram carne num talho, já arrumaram prateleiras num supermercado, já
apanharam batatas num campo, transportaram muito cimento, areia e pedra e já
andaram na apanha da fruta. Tudo isto no passado, onde deixou as memórias, o
valor do que é lutar e ajudar quando é preciso. Mas essas mãos, sem marcas fisicas evidentes, normalmente associadas a “trabalho duro”, são minhas. São de um enfermeiro.
Muitas pessoas que não percebem minimamente o valor da
minha profissão diriam que são mãos de quem nunca soube o que era trabalhar a
sério (como já ouvira antes da minha escolha de profissão), contudo saibam que
estas mãos, sem “calos”, são mãos que: pegaram em bebés recém-nascidos e lhes
prestaram os cuidados iniciais de vida; já cuidaram de crianças que nasceram antes
da data prevista e nem condições tinham para sobreviver sem ajuda extra; já
deram banho e trocaram fraldas a doentes cuja dignidade está dependente da
possibilidade de serem ajudados por outros (desde bebés com 28 semanas de
gestação a idosos com mais de 100 honrosos anos neste planeta); já alimentaram
crianças e idosos; agarraram a mãos de desconhecidos quando estes deram o
último suspiro e cuidaram dos seus corpos isentos de vida; limparam feridas; procuraram
a cura e procuraram oferecer dignidade na vida e também na morte de crianças (desde bebés a adolescentes), adultos e idosos.
Resumindo, as mãos de um enfermeiro podem não ter calos mas
não significa que o trabalho que exerçam seja menos "duro". Nós, enfermeiros,
cuidamos de seres humanos da melhor forma que sabemos. Cuidamos de recém-nascidos,
sejam prematuros ou não, crianças, adultos ou idosos, aquando de estados de
saúde ou de doença. As mãos de um enfermeiro são um veículo para a dignidade do
doente. Há muito mais no trabalho de um enfermeiro do que aquele que parece à
primeira vista e é pena nem sempre ser reconhecido mas, o importante a reter é
que não devemos julgar as mãos de um estranho. Pode não ter sinais evidentes de
um trabalho árduo mas as mãos isentas de calos podem estar associadas a uma
mente rica em momentos poderosos e pertencerem a alguém cujo coração é dedicado
a cuidar de quem mais precisa.
Sei que os textos não passam disso, palavras escritas
tornadas em frases mais complexas mas, se este texto chegou a ti de alguma
forma, faz-me um favor: Lê, reflecte e da próxima vez que vires um enfermeiro
lembra-te que, para estar onde está, abdicou de muita coisa para ajudar os
outros e não critiques a sua formação nem o seu caminho. Muitos enfermeiros não
o são porque não conseguiram ser médicos, não o são porque só limpam dejectos e
trocam fraldas, não o são para fazer pensos, etc. Os Enfermeiros são Enfermeiros
porque estão dispostos a abdicar de muita coisa para ajudar os outros e, se
lutam por melhores condições (ordenados, horários e direitos), é porque, no seu
trabalho, procuram dar também, as melhores condições a quem cuidam. Não
julgues, respeita!