sábado, 9 de setembro de 2017

Quando a magia acontece



E já passou. Foram meses de ansiedade e de espera e depois, acontece tudo num suspiro.
Estou esgotado, é verdade, mas o coração bombeia e vive de emoções inqualificáveis e sentimentos indescritíveis, após a honra que me deram de ter passado estes últimos dias convosco.
Se na terça-feira ansiava a chegada de sábado, devido às primeiras dificuldades e sentir a energia diminuir a passos largos, com alguns problemas que é possível acontecer, hoje dava tudo para ter conseguido ter, mais um dia que fosse, convosco.



Na vida temos a possibilidade de trilhar caminhos, fazer escolhas e optar pelo que nos faz bem. Mas também temos a sorte, de alguns caminhos se cruzarem no nosso e a felicidade surgir pelas mãos de quem não conhecemos.
Não sei como acabei aqui, não como cada um de vós foi escolhido, cada critério e opção. Mas sei, com toda a certeza que não poderia ter sido melhor. Do nada surgem amizades, do desconhecido surgem laços que nos trazem sorrisos impagáveis e nos mostram as lágrimas, são o preço do vosso e nosso valor.



Vi as vossas caras renitentes, com muitas dúvidas e anseios perante uma viagem com uns quantos (muitos desconhecidos), apenas com a certeza de querer ir pelo local onde sabiam que iriam estar. Hoje, apenas 4 dias depois, vi alguns em lágrimas, com desejo de voltar atrás no tempo ou, pelo menos, prolongar o sonho que foi nos termos todos cruzado algum dia no mesmo "caminho".
Onde fomos, conhecemos a magia de um local especial, do qual já falarei e onde qualquer um pode conhecer desde que pise aquele chão mas, meninos, percebam que a verdadeira magia, está no coração de quem a sente. Aquela que lá vi é única mas aquela que trouxe comigo e que penso e espero que tenham trazido convosco, guardada no vosso coração, é eterna.
Se estava com receio por pensar que, não se conhecendo, poderiam não resultar enquanto grupo, pois bem que aleatoriamente e sem haver contactos prévios, se criou um grupo compatível, onde aqueles que mais precisavam foram apoiados pelos restantes e aqueles que foram viver o sonho, não o quiseram viver sozinhos. Houve respeito, houve horas de diversão, houve quebra de regras e houve horas mal dormidas. Mas existiu acima de tudo, qualidade de vida! Se no dia-a-dia devemos seguir regras, comer bem, cumprir horários, ir a escola ou ao trabalho pois então que me permitam que vos diga, há semanas que temos o direito de quebrar tudo isso! E nesta semana criámos regras sim, mas alternativas! E fomos felizes, com elas, num mundo também ele, alternativo!



Esse mundo que vos falo é fisicamente partilhado por milhares de pessoas por dia, contudo vivido de forma única e particular por cada um de nós. Na Disneyland Paris, vives da forma que queres. Passas cada porta ou portão, pisas cada pedaço de chão e tornas-te naquilo que mais queres ser. Podes ser quem tu quiseres! E tenhas tu a idade que tenhas, em ti vive aquilo que és e muito importante, aquilo que foste. E disso eu não me envergonho de dizer que fui e sou muito feliz. Vejo desenhos animados regularmente e cresci a ver muitos dos que lá encontrei. Se fui por vocês meninos, acreditem que não estive menos atento e menos focado em, com vocês, cumprir aquele que também sempre foi um sonho meu.
Com alguns de vocês cantei as músicas que conhecia e com vocês senti o coração apertado ao ver e ouvir aqueles com que sempre sonhei, num mundo físico onde, na minha cabeça tudo era apenas imaginação. Fui por vocês, de coração, mas venho paralelamente com o meu sonho cumprido.
E nesse mundo mágico andámos muito, mas muito mesmo. Pernas de 50, 70, 80 ou 100cm andaram a mesma distância e após cada passo, cada queixa de cansaço, eram atenuadas com alguma palavra de consolo ou apenas após o oferecimento de ajuda por parte de alguém capaz de aguentar um pouco mais. Feita de cadeira-de-rodas, a pé ou ao colo, todos cumpriram metas e disfrutámos em pleno deste lugar.



Ainda vos ouço rir com algumas parvoíces ditas ou assistidas, vos vejo chorar com algumas personagens assustadoras ou aventuras que não quiseram fazer, vos vejo dormir em plena mesa de refeição ou simplesmente num banco de avião ou correr que nem loucos entre quartos, em baixo de camas ou a desfilar nos corredores. Neste pequeno pedaço de tempo, resumindo vivemos todos juntos, em quartos separados mas em família. 
Dependemos uns dos outros mas será sempre assim na vida "meus miúdos". Essa é uma lição que vos passo e que, dado o vosso passado em comum, de doença oncológica ou outra igualmente complicada: nós dependemos sempre uns dos outros, ninguém é totalmente feliz sozinho. 
Esta é a minha convicção.
A prova disso é que poderia ter ido à Disneyland Paris sozinho, cumprido e vivido o meu sonho mas nunca teria tido o mesmo valor. E hoje percebi isso quando, em lágrimas, me vi obrigado a despedir de vocês.
Cada um de nós está agora onde deve estar, com a família, com amigos, na vida que tem guardada para viver, mas lembrem-se sempre do quanto fomos felizes neste pequeno pedaço de tempo. Se a vida outrora vos fez sofrer, também vos permitiu viver uma grandiosa aventura nesta semana que passou.



Nem tudo foi perfeito e cabe-nos a nós melhorar com o tempo e com os erros, de forma a que de futuro, quem poder viver sonhos desta forma, possa ir limando as arestas necessárias.
Mas pronto meninos, esta aventura acabou e ainda havemos de nos rir e chorar a pensar em cada momento e atividade que vivemos juntos. Anseio pelo reencontro e por ir sabendo noticias vossas.
Não me irei prolongar nem falar de cada um de vós porque fui fazendo isso ao longo da semana, (não sei se se foram apercebendo). Pensei escrever uma carta individual a cada um mas o tempo não estava a meu favor. Por essa razão escrevi ao grupo e, caso seja possível, fá-lo-ei, individualmente no futuro.
No entanto, irei enumerar-vos e dizer algumas palavras que são importantes:

À Rafaela, Margarida, Paulo, Germano, Vanessa, Leonor, André, João, Filipe, Francisco, Beatriz e Carina.
Obrigado por serem quem são e como são. São especiais e vocês já o sabem. Uns mais introvertidos e outros com “pilhas” intermináveis fizeram o sentido desta viagem, deram valor ao que é ser especial. Poderia já conhecer alguns do IPO mas acreditem, morar no mesmo local e passar 24h com vocês permite-nos ir mais além e dar sentido, em 4 dias, ao que é gerar “ser uma família”. Como disse ao Germano na despedida peço-vos a todos os outros: Lutem sempre pelos vossos sonhos e não deixem, NUNCA, que vos digam que não são capazes de algo. Vocês já passaram mais do que muitos idosos e adultos tiveram de passar e acreditem, serão o que quiserem ser, desde que acreditem na magia e no poder que têm!

À Francisca, Margarida e Manuel.
Companheiros de viagem e guias pertencentes a esta dream team, quero agradecer-vos cada pedaço de apoio, cada ajuda e a ti, Francisca principalmente, porque sem ti nunca nada disto teria sido conseguido. Foste um dos pilares e mostras-te ter uma capacidade organizacional e relacional extraordinária. A todos vocês muito obrigado!

À Madalena e a Terra dos Sonhos.
Obrigado por me terem permitido embarcar nesta jornada única e me terem permitido cumprir o sonho a estas crianças e a mim. Estarei eternamente grato.

A todos os patrocinadores e organizadores da viagem
A todos vocês, cujos nomes não me foi possível memorizar, não terei palavras suficientes para agradecer. Vocês são pessoas com um valor excepcional, que permitiram mostrar que no mundo existem pessoas boas, capazes de mover mundos e fundos para pôr, quem mais precisa, com um sorriso na cara e com uma felicidade fundida à alma. Ensinaram-nos que, gerar felicidade nos outros leva a que o mundo seja um pouco melhor e menos egoísta. São pessoas a quem estarei eu, e todos os que embarcaram nesta jornada, eternamente gratos!

Aos pais.
A vocês, que têm estes filhos maravilhosos e que são, tal como eles, uns heróis, só vos quero agradecer uma vez mais. Imagino o receio e as dúvidas que tiveram antes de autorizarem esta viagem para eles mas agradeço-vos, do fundo do coração, terem-no feito. Graças a vocês permitiram que eles pudessem mostrar a eles próprios e ao mundo, do que são feitos, que tenham a idade que tenham, são excepcionais! Obrigado pela oportunidade que lhes deram e parabéns pelos pais que são porque isso reflete-se na bondade, carinho, educação, determinação e cooperação que eles mostraram ter.


Termino tudo isto agradecendo à minha professora da escola primária, Margarida S., que me ensinou a contar porque nunca, até esta semana, fizera tanto sentido saber contar tão bem até 16. Foi algo que nunca tinha feito tantas vezes. Também a ela o meu muito obrigado.

O Enfermeiro Mário





sábado, 26 de agosto de 2017

Quando o final nem sempre é feliz mas há personagens essenciais no percurso

Algum tempo de ausência na escrita, eu assumo. Escrevo tanto na mente mas, passar para o mundo partilhável vai sendo complicado, por questões de disponibilidade ou, principalmente, por não saber de que forma transformar o que sinto, em algo escrito e perceptível para quem possa, eventualmente, querer ler.

Tenho escrito os últimos textos acerca do meu serviço, do que de brilhante ali se faz pelo bem dos que cuidamos e até de histórias felizes e concretas. Nem sempre é assim. Gostava de escrever e dedicar um pouco do meu espaço, deste meu canto, a cada um dos que tenho “perdido”, dos que TODOS, temos “perdido”. Não perco apenas eu como pessoa e enfermeiro, não “Tu” que estarás a ler este texto, nem sequer os pais ou familiares. Perde o Mundo em que vivemos, pela grandiosidade e essência de que cada ser que ali passa. 
Existem batalhas duras é verdade, existem guerras que são vencidas e existem outras em que, infelizmente, não há finais felizes. Este é um facto.

Gostaria de homenagear cada um dos heróis que perdemos mas não conseguiria fazê-lo em espaço tão limitado, o que seria injusto para com aqueles que mereciam o mundo e, por alguma razão, o “monstro” levou o melhor. O que esse monstro não contava é que, no cérebro humano, há capacidade para manter vivo quem nos é mais querido, quem nos marca de alguma forma e, por essa via acreditem: essas crianças de que falo, vivem para sempre.
Não exagero quando o digo. Passam dias, meses ou até anos e a verdade é que cada criança é lembrada e falada tantas vezes, entre nós profissionais, que não é possível pensar que algum dia serão esquecidas. Não há local que conheça, e tenha trabalhado, onde cada paciente é tratado sempre pelo nome e se conhecem (quase) todos os casos e histórias daqueles com quem contactamos. Quer sejam histórias com final feliz, ou não. 

Por aqui, passe o tempo que passar, estejamos presentes no momento ou saibamos apenas depois, a partida das crianças que cuidamos torna-se sempre difícil. E talvez por essa razão, por ter perdido nos últimos tempos mais crianças do que pensaria, me tem sido difícil escrever. Só nos últimos tempos vi partir a princesa Elsa, o Super-Homem e a Gatinha. Não falarei obviamente em nomes, mas também tenho a certeza que eles, tal como quem com eles teve o privilégio de privar, saberá a quem me refiro. São o exemplo que o destino, se é que ele existe, é imprevisível. Que os poderes que temos ao nosso alcance, são maiores do que calculamos mas, nem mesmo eles, nos garantem sucesso nas nossas lutas. Mas a maior lição que vos posso passar da história comum destes 3 pequenos grandes seres, é que a luta não foi facilitada por parte deles. A luta durou meses a anos e a garra foi contínua, contudo nas guerras, o campo de batalha nem sempre nos é favorável e os heróis nem sempre têm o final feliz que idealizamos. O nosso papel nestas lutas, é garantir que jamais seja uma guerra em vão, que mesmo quando há uma derrota, sejam lembrados os mais bravos do quartel e do pelotão. Este é o papel do meu texto.

Quero lembrar-vos e dizer-vos que me foi tão duro ver-vos perder esta guerra. Que vi e assisti a um percurso cheio de suor e lágrimas, quer vossas quer dos vossos pais e familiares. Tenho na mente frases e brincadeiras vossas que não me esquecerei e garanto que, certamente, ninguém com quem privaram se esquecerá. Ensinaram toda a gente o que é, uma vez mais, o amor e a garra de lutar pelo que se quer, mesmo sem saberem, provavelmente que o estavam a fazer.

Princesa Elsa a ti quero apenas dizer que foi uma honra ter usado o teu gorro da trança, mesmo sem saber que era teu! E a tua cara de felicidade quando to devolvi, achando tu que ele se tinha perdido. No inicio sempre tão difícil de nos permitires chegar a ti, até que o teu lado carinhoso prevaleceu e nos permitiste fazer parte da tua vida. Apesar disso quase que levei com “uma cavala na cabeça” por te provocar em tom de brincadeira e não me vou esquecer disso e das gargalhadas de todos na sala. Sempre que ouço a música do filme é inevitável vires à minha mente, pelo que é mais uma garantia tua para que nunca te esqueça!




Super-homem, este é e será o teu nome. Não arriscaria voltar a tentar dizer a tua identificação secreta, que as pessoas teimam em chamar de nome, pois sei que já não o querias usar. A tua identidade será mantida e sempre que vir o super-homem sei quem estará por detrás daquela capa!

Gatinha, a ti quero dizer-te que muitas são as memórias que guardo de momentos contigo, dos miares e das pinturas das minhas mãos! Se essa era a forma de conseguir a tua atenção, pois que assim fosse. Lembro-me da forma adulta e, ao mesmo tempo carinhosa, com que falavas e olhavas, desde o dia que te conheci,até ao dia em que partiste. Não esquecerei ainda os abraços apertados e sinceros. Obrigado pela honra de me teres “autografado” a mão.



Tantos são os que chegam, alguns são os que acabam por partir mas acreditem que todos, sem excepção, são lembrados e à sua maneira vão deixando em nós a sua marca. Como já outrora disse, são crianças e, como tal, são puros e gostam e ligam-se mais a uns enfermeiros que a outros. E isso é o mais natural, contudo marcam toda a gente de forma transcendente pelas suas particularidades.
Por tudo isto, com todas as vitórias e derrotas com que somos confrontados, reforço que é uma honra poder conhecer cada uma destas crianças e, tal como já falei com uma grande amiga e colega deste serviço: No dia em que a morte de uma criança não me marcar e seja isenta de sentimento, estará na hora de mudar de rumo, pois nada mais fará sentido. Recuso acreditar que com o tempo será "menos penoso". Até lá, mesmo com o risco sempre iminente de perda, estou onde sempre quis estar e onde, enquanto enfermeiro e pessoa, a minha vida faz mais sentido. Obrigado por me ensinarem diariamente, a ser o que sou.

E não posso é contudo esquecer outras pessoas que são tão essenciais durante todo este processo: os pais ou quaisquer outros familiares ou cuidadores que cada criança tem.
Isto porque hoje, houve um episódio tão puro e peculiar a que assisti e ficou gravado na minha mente e passo a descrever:
- “Eu não te mereço” – Diz a mãe à filha;
- “porque não me mereces?” – pergunta, surpresa, a filha (a referir que é uma criança em idade pré-escolar);
- “Porque és boa demais para mim!” – Responde a mãe em jeito de conclusão.

Foi um momento único, que culminou com um beijo da mãe na testa da filha. Em mim senti cada palavra e emocionou-me. Impossível não me arrepiar.

Ali, as crianças mostram ser muito mais do que aquilo que eram. Deixam de ser “apenas crianças”. Se cada criança do mundo é especial, ali há uma transcendência desta definição. São obrigadas a ser o seu melhor. Os pais, que já as amam, dão de si mais do que algum pai pensaria ter de dar e isso é visível. Esgotam a sua energia, dormem mal (quando dormem), não comem como deveriam, as rotinas de vida e, até as orgânicas alteram. Tudo pelo alívio de qualquer sinal ou sintoma nos seus filhos. E ainda acham, no fim, que não os merecem porque eles são bons demais.
E são. São demasiado bons e especiais mas pais: vocês merecem os filhos extraordinários que têm. Se eles, que lutam contra uma doença com a qual nunca deveriam ter de lutar, vocês são as armas deles, são os cavalos que os transportam na guerra, são a cama onde eles repousam, são a comida que os alimenta, são a motivação para se manterem de pé e caminhar e são, aquando das derrotas, quem se encarrega de honrar as suas maiores vitórias! Por tudo isto não se desvalorizem.

Se passando no corredor nos centramos nas crianças, se nos cuidados focamos nelas as necessidades, não é menos notória a vossa presença. Reparo muitas vezes nas vossas faces, às portas dos quartos a ver o tempo passar e ele não colabora. Vejo tantas vezes as vossas olheiras marcadas, indicando que o sono se tornou um luxo para apenas alguns. Vejo-vos deslocarem-se ao WC realizar cuidados de higiene pessoal, sempre à pressa, aproveitando pequenas sestas ou momentos em que alguém pode tomar conta dos vossos filhos. Vejo-vos solicitar pacientemente na copa a comida para as crianças, mesmo quando sabem que ingerirem uma ou duas colheres do que eles próprios pedem, já será uma vitória. Vejo-vos, quando vos é possível, na varanda, a simplesmente respirar ar do exterior, e tirar os 5 ou 10 minutos que é possível para vocês.
E mesmo depois de tudo isto ainda vejo, sem saber como, tantos de vocês sempre dispostos a esboçar um sorriso aos profissionais ou quem vos visita, adicionado a uma ou outra brincadeira.
Por tudo isto, não se esqueçam: Vocês são tão heróis como os vossos filhos. É aqui, nestes momentos, que a palavra amor é tão evidente. Se o amor não é palpável, aqui ele é tão visível.

Em cada quarto, em cada cama deste serviço há uma história de vida. Há crianças dos mais variados países, distritos, localidade. Cada uma tem história e qualquer que seja a língua ou dialecto, qualquer que seja o género ou cor da pele, a idade ou personalidade, há algo que é evidente em quem ali está: o amor.

Em jeito de conclusão ouvi há pouco tempo uma frase que fez todo o sentido: “Uma árvore sem raízes é apenas um pedaço de madeira”. E aqui, neste serviço onde trabalho não poderia ter melhor comparação, pois estes seres maravilhosos, sem as suas origens, sem aqueles que os mantêm vivos e os “seguram” seriam simplesmente, crianças “vazias”.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

J.R. - A História de Um Guerreiro Açoreano

“És o meu enfermeiro preferido”- disse-me, enquanto a sua mão me guiava pelo corredor, até ao quarto, onde me queria mostrar um filme de animação. Nesse momento o meu corpo deixou o estado sólido e evaporou, ao mesmo tempo que instantaneamente, esbocei um largo sorriso. Pelo menos, na minha mente, por breves momentos, esqueci-me que era enfermeiro. Digo isto porque só não percebe o que quero dizer, quem nunca sentiu um abraço sincero e caloroso de uma criança, quem nunca foi presenteado com frases como aquela com que iniciei o texto. O mundo ganha outra energia, o vento mostra toda a vida e cor que tem e o tempo que é certo, deixa de o ser.
Esta é a história de um ser especial. Herói como todos aqueles de quem cuido, mas a ti, J., tenho a agradecer, porque mostraste-me uma vez mais, o que é ser humano.
Escrevo este texto porque preciso de dizer ao mundo, que estes seres de quem cuido no dia-a-dia, são capazes de mover montanhas e o serviço é, efectivamente um mundo especial, onde as regras formais da escola de enfermagem, por vezes, são postas a prova.



Escolhi este pequeno herói para falar porque a mim, me tocou e toca particularmente e mostra que nós, enfermeiros da pediatria do IPO, amamos o que fazemos, cuidamos com paixão de cada criança mas os vínculos criados são particulares e eles também nos “escolhem”, e dizem-no da forma que melhor sabem: com honestidade e frontalidade.
Deste “meia-leca” lembro-me, como se fosse hoje, do dia em que chegou. Ou melhor, da noite. Era Inverno e após uma viagem urgente de avião, chegaste ao serviço em pânico, a chorar imenso e renitente a toda a gente que não fosse a tua mãe e a irmã mais velha. Eu estava ao computador na sala ao lado e nem te vi. Ouvi do lado de lá da porta o aparato e a colega que te recebeu lá explicou o que já percebera: vinhas desesperado e com medo.
Passaram 4 longos meses de luta, com lágrimas e sorrisos, altos e baixos mas sempre a batalhar. Tudo percurso desta maldita doença que te atingiu e trouxe para a capital.



Hoje vejo-te regressar a casa, onde pertences e onde tu e a tua família mais necessitam de estar e estabilizar: o teu lar. Estou radiante pelas boas notícias associadas ao teu tratamento mas mentiria se dissesse que, parte de mim, não estaria triste. Não é fácil encontrar um fornecedor de abraços como tu, com a força e poder de fazer parar o mundo e de nos fazer lembrar, que durante as noites escuras, também há luz e os furacões, que são a doença oncológica, podem passar a ser apenas vento.
Descobri também, contigo, que ser Enfermeiro neste serviço, que é a Pediatria do IPO de Lisboa, não é ser enfermeiro como em qualquer outro lado. E acredita que tentei. Não há escudo que resistisse a tua forma de lidar comigo. Aprendi na escola a manter uma postura profissional. Ao cuidar com entrega mas eticamente manter valores e a vida pessoal distante do meu meio de trabalho. Pois lamento informar-te a ti, a quem estará a ler isto e com quem trabalho mas, falhei. Falhei redondamente enquanto profissional e assumo isso.
Mas se me perguntares se me arrependo? A resposta é: NUNCA.
Fiz o que sei de melhor, cuidei de ti enquanto enfermeiro mas, o meu lado de Mário, o humano, não ficou indiferente ao miúdo que és. Admiro-te, pela criança que és, pela capacidade de pores todos ligados à tua vivacidade e ninguém com quem lidas, te fica indiferente, sejam eles enfermeiros, médicos, assistentes operacionais, crianças e familiares, pessoas da residência, etc., etc., etc.
Preciso e quero dizer ao mundo que estes miúdos não são crianças, não são adolescentes. São pequenos grandes focos de energia. Parecem frágeis? Fisicamente têm limitações sim mas experimentem passar uma hora com qualquer um deles. Não são todos iguais certamente e não permitem, como qualquer outra criança/adolescente, que as pessoas entrem “na sua bolha”, mas acreditem em mim, são cativantes só por existirem. Mas cuidado, como dissera Antoine de Saint-Exupéry, na sua brilhante obra “O Principezinho”: “Somos responsáveis pelo que cativamos”.
E é por me sentir responsável por te ter cativado e isso ser mútuo, que pedi a tua mãe, J., a autorização para escrever sobre ti, sobre um pouco do que és, e por publicar algumas das fotos que, gentilmente quiseste tirar antes da tua partida para casa.   



Desejo-te o melhor do mundo, que a tua ida seja abençoada e que um dia te reencontre, nas melhores condições possíveis e com o sorriso igual aquele que sempre me/nos habituas-te. Serei sempre o Enfermeiro Mário do IPO, e que as memórias que permaneçam nessa mente, relativas a esta “estadia” na capital, sejam as melhores. As menos boas, e que fizeram parte do “teu caminho”, existirão, mas irás aprender que há “baús” na mente onde elas deverão ser arrumadas para não incomodar.
Muito obrigado por existires, muito obrigado pelo teu presente, que apesar de tudo, em nada se comparará à força dos teus abraços e das tuas honestas palavras, mas servirá para ter algo físico a lembrar-me que nesta profissão passam por nós pessoas memoráveis, que tenham a idade que tiverem, nos deixam um pouco de si e ganham um pouco de nós. Ganham um grande lugar no coração. Quero ir sabendo de ti e essa é a vossa missão família do J. Parabéns pelo filho, irmão, neto, sobrinho e afilhado que têm e por, uma vez mais mostrarem ao mundo que a união de uma família faz diferença na luta contra o cancro.
Daqui, o enfermeiro que honestamente assume que foi mais pessoa que enfermeiro nesta balança que é cuidar.

Mário Lopes.

P.S.: Muito poderia ainda escrever acerca desta história e pretendo fazê-lo, noutras circunstâncias, e a seu tempo. Para já, contemos que isto tenha servido apenas como resumo e, de momento, J., família e eu, teremos na mente aquilo que mais nos deixa ricos na vida: memórias.

sábado, 11 de março de 2017

O lado de cá daquelas portas de vidro

Está calmo. É noite e cá dentro passadas as portas de vidro, vive-se num mundo cuja barreira não apenas física, mas principalmente psicológica, se altera. O ar muda, fica à porta muito de nós, entra connosco o melhor que temos adicionando a maior carga possível de boa energia. Por vezes, as nossas mochilas pessoais, sacos térmicos e malas não permitem levar muito mais connosco, mas cá dentro, na alma, cabe muito. Seja para levar o que temos, seja para trazer o que nos dão.
Falo e escrevo, na perspectiva de um profissional de saúde deste serviço. Já muitas vezes se abriram as portas “a estranhos”, todos são bem-vindos, quando assim é possível e quando o risco para os “nossos meninos” não se eleva perante os benefícios dessas entradas. Contudo, apesar dessas visitas, só quem mora por cá percebe o que escreverei, seja na perspectiva de doente, seja na perspectiva de cuidador, formal ou informal.
Enquanto cuidadores – pais, avós, tios, primos, amigos ou simplesmente pessoas de referência – essa visão já foi, outrora descrita (e bem). Dessa forma, foi-nos permitido entrar por meros minutos, na cabeça de quem tem um ser que ama a percorrer um caminho moroso, sinuoso e, por vezes, nada previsível. Quero agora mostrar através dos meus olhos, como vivo neste meu mundo, naquela que é graciosa, e orgulhosamente, a minha segunda casa.
Escrevo este texto após mais uma (longa) noite de trabalho. Como adjectivo que a descreva, apenas usarei, para já, a palavra longa.
Fez-se noite cedo neste dia de Inverno. Preparei-me para entrar no meu local de trabalho. Vou de coração apertado, ansioso e receoso por entrar, pois o serviço está cheio de crianças, de todas as idades, em várias fases de tratamento, com diversas patologias e muitas delas, nossas conhecidas. Muitas com intuito curativo, outras com um triste fim anunciado, onde o alívio de sintomas é a prioridade principal.
Ao chegarmos a este hospital a aura, por si só emanada pela sua existência e pelas energias de quem ali trabalha e é cuidado, sente-se como se uma bolha de humanismo nos pudesse invadir e não sabemos sequer de que direcção vem. A esta hora, 22h, já pouco movimento se vê, os estabelecimentos de apoio estão a fechar, os serviços de atendimento diurnos, responsáveis por receber grande parte do movimento do instituto, há muito que encerraram, e as últimas visitas dos pacientes, que teimosamente foram ficando, saem. Ficamos nós, que entramos para o trabalho, e os que já estavam a cumprir o seu dever, sem falar no principal oxigénio deste organismo, e que nos move, os doentes.



Após dar entrada, passar pelo segurança e subir pelo elevador, dando os últimos retoques e preparativos para entrar ao trabalho, chego ao 7º piso e, quer se acredite ou não, é uma viagem demorada e, tantas vezes associada a uma viagem de comboio urbano da linha de Sintra, onde as paragem são feitas em todas as estações e apeadeiros, neste caso em particular, vulgarmente conhecidos por pisos e serviços. Ao longo desta viagem, vão sendo recolhidos passageiros, todos vestidos de branco ou azul, e distribuídos pelas suas “estações”. As expressões emanadas pelos seus rostos são, desde sorrisos rasgados associados a cumprimentos, até expressões de sono e distracção de quem deambula sob efeito de “piloto automático”.
Chegamos então, às tão aclamadas portas de vidro que selam aquele local misterioso. Não podiam estar noutro local, no mais alto patamar do edifício e de frente para a capela, onde as preces diárias de dezenas de pessoas, profissionais, pacientes e familiares, são libertadas sob muitas formas, em busca de respostas, com o coração carregado de energias e sentimentos ora bons, ora maus. Apenas em busca de Alguém que os ouça, Alguém que os entenda, Alguém que lhes estenda a mão, e lhes dê paz na alma.
Nós, enfermeiros carregados de malas, mochilas, sacos e sacolas, como já referi, levamos bens-pessoais, comida para várias possíveis refeições (como se nós conseguíssemos ingerir sequer metade delas) e principalmente, levamos uma carga que não nos ocupa espaço físico, mas pesa. E se pesa. Falo de emoções, de expressões e de vontades, que inconscientemente escolhemos cuidadosamente para levar connosco. Tudo isto passou hoje comigo, uma vez mais, por estas portas de vidro.
Fardo-me e bebo o meu primeiro café, o meu combustível físico para aguentar mais um moroso turno da noite. Sento-me e olho em meu redor, vejo os meus colegas e não me agrada o que me transmitem. Não preciso de ver uma gota de suor nos seus rostos para ver o estado de exaustão, basta para isso ver as olheiras, o passo apressado, o cabelo desgrenhado, a respiração ofegante e ver – falo de ver realmente, com olhos e com o coração - as bancadas de trabalho e a mesa onde nos reunimos 3 vezes por dia. Tenho em mim duas opções para o explicar: ou passou um furacão ou foi uma tarde caótica de trabalho. Não questiono porque sei a resposta: foi a segunda opção.
Olho para a folha que tenho para receber o meu turno, escrever informações importantes de quem vou cuidar. Vejo muitos nomes, nomeadamente sete (oito no caso de outra colega), espalhados cuidadosamente numa folha A4, para que seja possível escrever tudo o que importa, de todos e cada um. A folha tem muitos nomes, o que por si só, determina que a minha ansiedade ao ir trabalhar, estava certa. Não há espaço para reclamar, mas fazemo-lo: verbalizamos desagrado, emitimos onomatopeias, lamurias, rimos em conjunto (como visível efeito da ansiedade que nos levaria para um de dois caminhos: o choro ou o riso. Escolhemos habitualmente o segundo, felizmente) e prosseguimos. Entre os que saem muito depois da hora estabelecida e nós, que queremos e pretendemos prosseguir os cuidados, gera-se uma fase inicial atribulada naquele nosso espaço. Há pressa para chegar a todos aqueles que temos para cuidar, no tempo que temos para o fazer, que nunca é suficiente. A sala de enfermagem, que se pretende que contenha os momentos atribulados, os sentimentos adversos e sele a passagem de tudo isso para o exterior, evitando transparecer para as crianças quaisquer sentimentos negativos, acaba por não cumprir o seu papel e, entre tantas entradas e saídas e o ranger da porta, é visível a ausência de calma e de uma presente agitação.
Nesta longa noite que passou, senti necessidade de escrever este texto e não o consegui fazer, por falta de tempo para isso. Precisava de calma, de espaço e de tempo, que não tive. Contudo, no escuro criei ideias para transpor, descrevi frases e conceitos e organizei sentimentos.
As primeiras horas são definidas como correria, avaliando sinais vitais, fazendo dezenas de metros para observar as crianças e cumprir horários de medicação, tentando enquanto enfermeiro responsável que quero ser, estar em 7 quartos no mesmo exacto minuto para que os antibióticos (por exemplo) não falhem a sua hora. Pois lamento transmitir que não consegui, o mundo dos super-heróis ficcionais era o único que me permitiria cumprir isso. Contudo, sendo humano, a velocidade que consigo atingir, é limitada. Falo e distingo o termo de super-heróis ficcionais por uma razão, esses existem nas séries, livros e filmes que temos acesso actualmente mas engane-se quem desacredita na existência de super-heróis reais. Desses, tenho comigo no serviço 22, mais umas centenas em suas casas ou lares temporários.
É por eles que ali estou, por eles que ali estamos todos. Toda a equipa multidisciplinar que ali exerce funções. Mas como enfermeiro que sou, a visão que quero passar, e que me é possível, desculpem-me os restantes, é a da minha profissão.
Somos nós os elementos presentes 24 horas por dia, 7 dias por semana e 365 (ou 366) dias por ano. Nesta noite, no silêncio destes corredores, fecho os olhos e escuto. O corredor está vazio, isento de movimento a esta hora e a única coisa que se vai alterando é o som de campainhas, o vermelho das mesmas reflectido no chão lavável, nos vidros que dividem os dois corredores do serviço, ou simplesmente as que não se repercutem nas lâmpadas das portas mas que sabemos que, lá dentro, alguém chama por nós. Chamam por dores, náuseas ou vómitos, por ter terminado alguma das mil medicações que administramos, porque a bateria de alguma das suas máquinas terminou, para algum tipo apoio emocional ou, até apenas, por engano. Já para não falar no resto da lista infinita de possibilidades.
É verdade, tocam a campainha e chamam-nos. Precisam e nós vamos, sem qualquer problema. O que mais me apercebo, no entanto, é que pode estar a ser um turno mau (em que, tal como os meus colegas do turno anterior, é notório o enorme desespero por se sentirem incapazes de cumprir todas as obrigações no seu tempo devido), mas dou por mim, a abrir cada porta, ir à minha mochila mental e inconscientemente, coloco o meu melhor sorriso antes de dizer: “Boa noite! O que aconteceu? Precisa de alguma coisa?”. Por muito cansado, por muito frustrado comigo, por muitos problemas que tenhamos na vida, ali deixam de existir, aquelas crianças levam-nos a um estado de transcendência que a mim, enquanto enfermeiro, enquanto Mário, me dá um sentido à profissão e mais, me dá um sentido enquanto pessoa!


Passam-se horas em que as campainhas parecem combinadas entre si, em modo de melodia, e lá nos dividimos entre o que podemos, para chegar a todos. Umas noites melhores que outras e a calmaria não é proporcional ao número de crianças. Por vezes, por uma questão de simples resolução, deslocamo-nos ao quarto de uma criança e acabam por passar horas. Acontece porque o medo e as dúvidas dos pais se multiplicam, porque a ligação que temos com essa criança é tal, em que simplesmente a energia que também precisamos obter, é conseguida em tempo de qualidade com ela, ou porque somos perfeccionistas e as coisas demoram a ser feitas com pormenor.
Somos humanos antes de seremos enfermeiros e como tal, a ligação que criamos com cada criança, cada familiar, não é igual. Enquanto enfermeiros desempenhamos os nossos cuidados de igual forma a todos, dando o nosso melhor, mas quando se tratam de “ligações coração-coração” com famílias e pacientes, o caso é diferente. Neste serviço, como disse no início, de crianças recém-nascidas a adolescentes, qualquer que seja a razão, as ligações pessoais têm diferentes intensidades e não se explicam. Somos humanos e somos sociais e tal como qualquer adulto, estes pequenos enormes heróis escolhem-nos também eles, como enfermeiros.
Um turno como a noite, geralmente mais silencioso, passado num longo corredor verde água, com paredes recheadas de brindes, oferecidos por ídolos dos mais pequenos (desde jogadores de futebol a músicos e cantores, entre outros), quadros e personagens ficcionais de animais, contrasta completamente com um turno como a manhã ou tarde onde, esse mesmo corredor é inundado de vida. Onde, se fecharmos os olhos, ouvimos conversas aleatórias de familiares que ali se conheceram e se uniram como apoio nesta dura luta dos seus dependentes, profissionais que passam com passos largos por todos, para chegarem a todo o lado, rodas de suportes de soros (carinhosamente chamados, muitas vezes, por bobby’s) e de triciclos, choro de crianças sujeitas a algum procedimento, por fome ou simplesmente contrariadas na sua vontade. E vêem-se sorrisos e ouvem-se risos. Muitos sorrisos se passam ali, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa.
As crianças com cancro não passam a vida a chorar, não passam a vida deprimidas e muito menos, abandonadas a um canto, sem família. Os sorrisos nunca são demais e são constantes. Acreditem que a maioria dos sorrisos largados no meio destes corredores e quartos é das crianças que ali estão, e não dos profissionais (e olhem que nós temos muitos sorrisos para dar, e enormes! Em nome do melhor que sabemos e do melhor lado que nos é exigido, por parte destes grandes e maravilhosos seres).
Há tanto para escrever sobre a forma como cuidamos, como damos de nós, como somos recebidos nos braços e carinhos destas crianças, mas eu fiz noite e ainda não dormi. Como referi aqui neste texto, sou humano e isso implica que o sono venha e o cansaço acumule. Para, enquanto enfermeiro, cuidar de crianças com cancro, não é preciso coragem, é preciso coração, é preciso amor. Não porque não o tenham, mas porque o processo que têm de passar é complicado e atribulado e a balança das emoções, tem de ser equilibrada. Para más energias já bastam as da doença. Nós, enfermeiros, jogamos do lado da equipa das crianças, vamos à baliza e vamos à frente, lado a lado com elas e com as famílias, porque disso depende o preço da nossa alma e da nossa consciência humana.
Quando acharem que para lá daquelas portas de vidro automáticas, mora apenas pesar e dor, acreditem que num pequeno enfermeiro, mora amor. Moram sorrisos e o choro, esse, mora quando o amor magoa e faz às crianças aquilo que, neste processo, vai sendo exigindo. Como qualquer guerra, não se vence sem várias batalhas.
Batalhas essas, que também as perdemos e nem tudo é colorido, é um facto. Resta-nos usar as armas que temos, os dois braços que possuímos e a boca ligada à alma e ao coração, para dar um abraço, ceder um ombro e seja com palavras, ou com silêncio apoiar o processo que é uma das maiores lutas da humanidade: a perda de alguém que se ama. Não somos de ferro, nem tampouco de pedra mas somos profissionais capazes de soldar emoções, chorar lágrimas doces ou salgadas e criar muros para proteger, como melhor for possível, aqueles que cuidamos.

Daqui, um enfermeiro do Serviço de Pediatria do IPO. Daí, espero que uma alma, aberta a uma nova visão do lado de cá daquelas portas de vidro.


Imagens retiradas do google.

Carta para ti próprio, para que não te esqueças!

Dia de aniversário, sentado no chão com as costas apoiadas num pilar. Está frio, sendo os valores de referência aqueles que se têm neste meu país que amo. Ao fundo, entre sons de aves, motores de automóvel, conversas aleatórias que nada mais fazem do que isso, barulho. Mais alto ainda, mas que ninguém ouve, estão os mil pensamentos que teimam em andar em redor de sítio algum. Já eu, antagonicamente estou num local que sei bem qual é, que já tanto ouvia falar mas apenas hoje lhe dei uma imagem real, colocada física e geograficamente. Falo do Hospital Dona Estefânia.

Diariamente trabalho com crianças, muitas vão daqui para lá por situações menos felizes, mas muitas vezes ou, pelo menos mais vezes do que gostariam, muitas são enviadas também para cá quando o estado assim o dita, por necessidade de cuidados intensivos. Isto tudo para dizer que este não é o dia de aniversário ideal para ninguém, quando pretendemos que o nosso dia seja memorável expectamos que seja por motivos bons.

Hoje não. Hoje estou aqui porque, por ser enfermeiro não estou imune a problemas de saúde. Nem eu, nem os que me são próximos. Eu que encaro, sempre que me é possível, o dia-a-dia, no trabalho, com um sorriso na cara, um carinho no toque e nas palavras e um abraço sempre preparado para quem pedir e premir esse gatilho no Ser Humano que teimo em ser, hoje estou a viver tudo do outro lado. O lado de quem é cuidado, de familiar.

Não tem sido um percurso de hoje, nem de ontem. Tem semanas e muito me tem ensinado. Aprendi que frases que dizemos no dia-a-dia com a melhor das intenções, não nos soam igual quando em vez de proferidas, são ouvidas. Quando a calma não se consegue só porque é aconselhada. Têm sido semanas de uma luta intensa, que bem como guerreiros de qualquer civilização antiga, dura dias inteiros – luta entre o Enfermeiro que sou e o familiar que não posso nunca deixar de ser. Momentos ganha o Mário familiar e tudo se complica mas tento que, sempre que possa, prevaleça o Mário enfermeiro, que tem a calma e a palavra que é precisa e esclarecedora para quem, ainda mais em pânico sente na pele o medo e as intervenções perante alterações na sua saúde.

Muito tenho aprendido com isto, muitas lições são ensinadas e os pensamentos que voam em redor de sitio nenhum trazem noções que não tinha. É estranho andar em corredores de hospital sem que seja com uma farda colocada, um cartão que abre portas e caras conhecidas, com sentido de onde se vai, de onde se vem e onde queremos ir. O poder que temos no dia-a-dia e não sabemos e notamos existe e só agora denoto isso. Somos referências para quem cuidamos e só agora percebo. Dá-me mais força e atenção para valorizar, ainda mais, as pessoas com quem cruzo, que cuido e os pequenos seres e suas famílias com quem tenho a honra de lidar e me cruzar todos os dias.

Não me irei estender mais, mas quero e preciso expressar que hoje, como presente, só peço que tudo corra bem naquela sala de cirurgia, que a recuperação seja a melhor e que muito em breve me seja permitido encontrar-te de novo saudável, ou pelo menos sem males maiores. De resto, para mim mesmo, que tudo isto seja uma lição apreendida e não me esqueça do que sou e principalmente para quem sou. Que a minha caixa pessoal de sorrisos, abraços, respeito, palavras, amor e carinho seja sujeita a um aumento significativo e que possam ser, cada vez mais, distribuídos de coração.

Carta para ti próprio, aniversariante ;)