sábado, 22 de setembro de 2018

Era uma vez...


Era uma vez…
Era assim que gostaria de começar a descrever a história da minha profissão ou até de um turno meu mas, infelizmente, não posso começar assim pois nunca será uma fábula ou história de encantar. Não posso iniciar assim porque tudo é real, porque adormeço e acordo e apercebo-me que ao invés de sonhos e pesadelos, se trata de acontecimentos autênticos. Não que não os sonhe mas sim porque, quando a memória os repete é porque já os vivi antes.
“Porque não fui para engenheiro?” - Perguntei eu para ninguém, ou para mim mesmo, a meio de um “infernal” turno da noite, cujos sons vividos ali, agoniam a minha mente e mancharam a minha alma até hoje. Não obstante o facto de estar num turno cujo horário altera o nosso bem-estar por razões óbvias (quem trabalha por turnos rotativos entenderá perfeitamente), ainda as vivências e ocorrências, com gemidos constantes e dor de uma criança nos fazem, ainda hoje, perder o sono. Foi um turno de loucos este que vos falo, relativamente recente, onde desejei ter uma caixa insonorizada onde, por breves momentos, me fosse permitido fechar, gritar até expulsar todos os meus “demónios” e depois sair, “exorcizado” dos medos e agonias da minha própria incapacidade de fazer melhor. Há dias que marcam a alma, como já alguém o dissera outrora, e certamente que este foi um deles. Valeu o trabalho de equipa, o apoio incondicional das colegas enfermeiras e médicas e a vontade de fazer o melhor, da melhor forma que conhecíamos, pelo tesouro daquela mãe e pai, que desde que entraram naquelas portas de vidro, se tornou também tão nosso. Não falo nomes, não o posso fazer mas se algum dia a mãe e o pai lerem isto e perceberem que falo de vós, permitam-me dizer-vos obrigado por nos ajudarem a nunca baixar os braços e parabéns pela vossa coragem, força e determinação no caminho com o vosso filho!
O sentido negativo desde turno não foi isolado por ali. Depois deste atrás falado seguiram-se mais uns quantos assim difíceis (senão todos eles, com intensidades e causas diferentes). 
Há complicações neste caminho, há estradas com tantas curvas apertadas e com caminhos que não levam a lugar algum e isso dói-nos tanto quanto possam imaginar. As famílias sofrem, certamente horrores com algumas notícias mas posso garantir-vos que nós, enfermeiros, por trás dos sorrisos e manifestações de força e apoio, também sofremos muito convosco e a dor é, em parte, partilhada. Há alturas que apetece ter poderes para parar o tempo, para mudar rumos e até curar. Mas voltaríamos ao “era uma vez…” e, novamente concluamos que não estamos numa fábula mas sim numa real história de encantar e essas, infelizmente, não acabam sempre bem.
Queria ter voltado ao blogue antes, já mo pediram tantas vezes nestes últimos tempos mas não fui capaz. Podia escrever algo ou partilhar textos mais antigos mas não era justo nesta altura. A minha alma anda um pouco “rachada” e tinha de tentar assentar ideias antes de escrever. Devia isso a mim, a quem lê e a quem partilha comigo as histórias do dia-a-dia do meu local de trabalho, aquele mundo brilhante e especial em que apesar de tudo e desta fase mais difícil, me obrigo a acreditar que existe.
Sou fascinado pelo meu trabalho desde que ali estagiei e principalmente desde que ali comecei a exercer a minha profissão em 2016. Quem me conhecesse, quem lida comigo dentro e fora do trabalho e penso que principalmente, as crianças de quem cuido diariamente percebem o quanto eu amo o que faço e dou o meu melhor. Se noutras profissões isso pode ser o suficiente para o sucesso, ali infelizmente não o é. O nosso sucesso profissional não está obrigatoriamente associado ao sucesso real do que fazemos e isso vai-nos lesando. Leva-nos a um desgaste e a mim leva-me a momentos de reflexão muito próprios. Vivo o trabalho dentro e fora de onde o exerço, com plena noção das consequências disso. Contudo quem lida comigo nos últimos tempos, e ouve os desabafos sabe o desgaste e as dificuldades em lidar com tudo o que tem acontecido nos últimos tempos e assumo que  eu próprio cheguei a temer pela minha saúde mental. Fui aconselhado por quem me quer bem (família e amigos), mesmo sabendo o quanto amo este local, a mudar o rumo, a fazer algo por mim para que as minhas energias não me consumissem. Mas sou teimoso, muito teimoso e recuso-me a baixar os braços a esta minha luta e esta minha missão com a qual me comprometi desde 2016. Esta fase foi, é e será mais uma fase de superação, mais um obstáculo a ser ultrapassado e quem ali está comigo sabe que há mimos dos pais e dos pequenos heróis que nos fazem seguir, mesmo quando não são propositados nem pensados e vêm sob a forma de pequenas palavras, elogios, sorrisos ou acções. E esses mimos sim, são a energia que precisamos para nos ajudar a recuperar e ganhar forças para cada dia que ali estamos.  
Se ali tenho crianças que lutam diariamente contra algo tão difícil, que direito terei eu de pensar sequer em desistir? De baixar os braços na ajuda daqueles que mais de mim e dos meus colegas precisam? Ninguém vence isto sozinho, seja quando o objectivo é a cura ou, se pelo contrário, quando a ciência não consegue, de momento, ter nada mais a oferecer e outras decisões são tomadas! Como eu disse há umas semanas a um dos meninos que entrou naquele serviço: “isto é um jogo de equipa, não se consegue nunca sozinho e se tu és a personagem principal da equipa, nós enfermeiros, médicos, auxiliares e a tua família, somos os outros jogadores e juntos vamos fazer o nosso trabalho”! Poucos dias depois soube por ele que, como bom capitão de equipa/treinador, me atribuiu a função de guarda-redes. Assim sendo, quer na equipa dele, quer na dos outros pequenos e grandes heróis, farei o possível para defender os remates do nosso grande e poderoso inimigo.


Imagens retiradas do Google
Por vezes só queríamos que fosse mais fácil, que esta sensação de afogamento no trabalho, onde parece estarmos constantemente a procura de ar para respirar, ficasse mais facilitada. Mas para isso eram precisos determinados poderes, que não existem nas “fábulas reais”, portanto vamos lá vestir os equipamentos azuis turquesa e brancos, encarar o jogo de frente e aguentar o embate dos remates do adversário da melhor forma possível.
Podia ter ido para engenheiro (com as muitas dificuldades para tirar um dos muitos cursos dessa área, e posteriormente o exercer)? Podia mas se o Mário hoje fosse engenheiro, não seria enfermeiro, logo não estava a trabalhar onde estou por isso peço desculpa ao primeiro mas o segundo terá sido e continuará a ser mais importante para a vida de alguém!


Mário, o Enfermeiro Guarda-Redes.