Ainda não acredito que te estou a escrever esta carta. Não
acredito que te estou a escrever algo que provavelmente nunca irás ler, mas eu
escrevo-te na mesma. Não acredito que estou prestes a ir aquela terra, tão tua,
para me despedir de ti. Não o queria fazer e sonhei e esperei que este dia
nunca chegasse, tais eram os planos todos que ambos tínhamos para fazer. Contudo
tu, meu amigo toureiro, foste assaltado neste percurso e a morte levou-te a alma,
deixando-nos apenas misericordiosamente o corpo, para chorarmos. O que ela não
contava é que aquilo que faz de nós humanos, a par de sentir emoções, é a
capacidade de ter grande memória e ela pode ter levado aquilo que te dava vida
mas nós temos um plano B, e vamos recorrer a ele para te manter vivo: as nossas
memórias de ti. Até o tempo me levar essa capacidade, meu amigo, tenho presente
o teu riso, sorriso e voz, as tuas conversas loucas entre uns tantos momentos
passados contigo, etc. Além de mim terás um vasto leque de pessoas que te
adoram e que irão ajudar nesta missão de te manter vivo, mesmo que ausente.
Muitas pessoas que possam ler esta carta, não te conheciam
mas vão ficar a saber o quanto tu sempre foste o menino especial. Se todos são
à sua maneira? Sem dúvida. Mas quem te conhecia sabe bem ao que me refiro, ao
quanto a tua força era tão forte e intensa, quanto o teu lado humano e
sentimental. “Este meu menino é feito de aço” disse-me alguém muito próximo de
ti, e só alguém de aço poderia ter aguentado tudo aquilo que tu aguentas-te meu
amigo. E a tua armadura não era visível, mas que existia, não tenhamos qualquer
dúvida.
Despedi-me de ti naquela sexta-feira, dia 12, em que foste
transferido para a UCI, com o recado que estaria a tua espera e que não
demorasses. Demoras-te e agora ficarei eternamente à tua espera meu amigo,
naquele lugar onde não te voltarei a ver entrar, onde tu tanto querias ir e
passar bons momentos, e nem mesmo assim, com quem adorava conviver na frente
com o risco, esta maldita doença te permitiu continuar o teu caminho connosco.
O teu lugar era na frente, de caras para os desafios, seja
numa arena com os touros ou num hospital com um cancro. Nunca te vi virar
costas aos desafios e fugir do que quer que fosse. Se era para fazer, “então
vamos lá”. Até para um procedimento tão assustador como a punção lombar eu fui
chamado para te segurar porque “ele é grande e tu és rapaz, ainda bem que estás
cá para o agarrar” e aquilo que tinha tudo para me dificultar e exigir de mim
esforço físico, se tornou apenas um abraço de amigos porque não vacilaste 1mm
que fosse! E esta memória foi partilhada por ti várias vezes pelo que também a
vou guardar e registar meu amigo.
Quando te conheci, no quarto 15-18, logo na primeira cama à
direita, nem me estavas atribuído como doente nesse dia mas tinha o menino à
tua frente. Nem falei directamente contigo mas estava na palhaçada com o miúdo
da frente, o L., e ele disse alguma coisa que te fez rir a ti e ao teu pai,
várias vezes e esse riso miúdo, não quero esquecer. Um dia mais tarde, numa das
nossas conversas tu falaste-me nesse momento e no quanto te marcou esse dia,
por teres percebido o quão especial era aquele lugar e as pessoas, o miúdo (L.)
sem te conhecer ofereceu-te algo que tinha para comer e tu acho que nem
aceitaste mas percebeste o valor da acção e tocou-te o coração. Pois bem que
tinhas razão, aquele lugar é especial demais, pelo que se faz, por quem
trabalha mas é ainda mais e, principalmente, pelos miúdos como tu que ali
passam e marcam a história de cada centímetro de chão, paredes e tecto. São
muitas as histórias juntos naquele serviço e ao lembrar-me delas tanto me fazem
chorar como me aquecem o coração! Na ultima passagem de ano fiquei chateado por
ter o meu grupo de amigos fora do hospital a festejar e eu fiquei a trabalhar.
Hoje, percebo que foi uma bênção lá ter estado, porque foi lá passada contigo,
mesmo que estivesses na casa de banho à meia-noite!
Não conheci ninguém que gostasse tanto de estar internado,
que me mandasse mensagens a avisar quando ia internar e a chamar-me pelo messenger
às 4h da manhã para lhe arranjar água, para não acordar a mãe e ainda ficarmos
na conversa mais uma quantidade de tempo enquanto a tua mãe dormia. Nem
acredito que não repetirei as nossas sessões de treino personalizado em
bicicleta, onde quem nunca queria fazer desporto no quarto do internamento,
cumpriu 30minutos ao som de música pimba! Tudo isto sempre fará de ti um ser
especial, um miúdo tão único que me fez ultrapassar a barreira profissional
para a pessoal sem dar conta! Foram horas de conversas, de partilhas de medos e
dúvidas, que tentei aliviar e esclarecer! E juro meu amigo, juro que dei de mim
o meu melhor meu amigo! Desculpa se mesmo assim o meu melhor, não foi o
suficiente para te salvar mas eu tentei!! Tu que sempre gozaste com a minha
fobia de vacas e me querias por na frente de uma para perder o medo, acredita
que hoje, se isso fosse uma ajuda e fizesse tu puderes estar bem, então iria
encher-me de coragem e entrar nessa arena! Mas de arenas e touros vou marcar
apenas para mim o objectivo de nunca me esquecer do brilho que irradiava dos
teus olhos quando estavas na presença da festa brava! Há pessoas que nascem com
dons e tu, meu amigo, tinhas um que era o teu sonho, e mesmo que não o vejamos
aqui no nosso mundo, espero que consigas cumpri-lo porque mereces tudo!
Há dois dias que procuro justiça mas já parei, porque seria
uma busca sem fim. Como uma das pessoas mais importantes na minha vida me disse
ontem: “Pára de procurar justiça por favor! Se houvesse, o teu serviço nem
existia!”. E tem razão, por isso justo sei que não é, mas aconteceu e
infelizmente não poderemos criar novas memórias mas irei reviver de forma saudável,
as memórias dos momentos que passámos juntos e, com o tempo trocar apenas as
lágrimas que me correm no rosto actualmente, por um sorriso, porque era assim
que tu farias!
Tenho comigo algo que me ajudará a lembrar sempre de ti, os
teus periquitos, que me ofereceste, enviados pelo teu avô. Se já me ligava a
eles e foram importantes, então agora a missão de cuidar deles é ainda maior! Não
tive oportunidade de te dizer mas digo-te agora nesta carta, que depois de
muito tempo a aguardar, e umas quantas intercorrências que te contei, já
nasceram as primeiras crias. Que cresçam fortes porque mal saberão eles o que
representam para mim!
Obrigado por teres cruzado o meu caminho! Como tu um dia me
disseste: “Que isto pelo menos me permita conhecer amigos!”. E conheceste
acredita. Fizeste um amigo, que torce para que estejas bem, e que saibas que
por muitas saudades que tenhamos, um dia vamos voltar a estar juntos! Agora,
onde queres que estejas, vai preparando o espaço para a nossa grande festa de
reencontro porque eu não me esqueço das promessas e da comida e bebida trato
eu! Há duas promessas a cumprir contigo!
Não acredito em coincidências e soube da tua perda logo após
ter saído do cinema onde o filme que vi se chamava “Assim nasce uma estrela”. E
nasceu. Onde quer que estejas, a brilhar e a emanar aquela tua gargalhada e o
teu sorriso, guarda um lugar bem pertinho, porque um dia quero voltar aquele
abraço (desta vez sem qualquer agulha associada prometo), quero voltar a ir ao
parque de campismo almoçar contigo, ver a largada dos touros para as ruas e
posso até voltar a tocar e a cantar a musica que vos cantei aquele dia no
hospital!
Que esta despedida seja temporária e lembra-te que aqui,
nesta arena da vida, as saudades apertam mas fomos muitos felizes por termos
tido a honra de te conhecer!
Obrigado e até um dia João!
Mário Lopes