domingo, 28 de outubro de 2018

Meu amigo toureiro


Ainda não acredito que te estou a escrever esta carta. Não acredito que te estou a escrever algo que provavelmente nunca irás ler, mas eu escrevo-te na mesma. Não acredito que estou prestes a ir aquela terra, tão tua, para me despedir de ti. Não o queria fazer e sonhei e esperei que este dia nunca chegasse, tais eram os planos todos que ambos tínhamos para fazer. Contudo tu, meu amigo toureiro, foste assaltado neste percurso e a morte levou-te a alma, deixando-nos apenas misericordiosamente o corpo, para chorarmos. O que ela não contava é que aquilo que faz de nós humanos, a par de sentir emoções, é a capacidade de ter grande memória e ela pode ter levado aquilo que te dava vida mas nós temos um plano B, e vamos recorrer a ele para te manter vivo: as nossas memórias de ti. Até o tempo me levar essa capacidade, meu amigo, tenho presente o teu riso, sorriso e voz, as tuas conversas loucas entre uns tantos momentos passados contigo, etc. Além de mim terás um vasto leque de pessoas que te adoram e que irão ajudar nesta missão de te manter vivo, mesmo que ausente.

Muitas pessoas que possam ler esta carta, não te conheciam mas vão ficar a saber o quanto tu sempre foste o menino especial. Se todos são à sua maneira? Sem dúvida. Mas quem te conhecia sabe bem ao que me refiro, ao quanto a tua força era tão forte e intensa, quanto o teu lado humano e sentimental. “Este meu menino é feito de aço” disse-me alguém muito próximo de ti, e só alguém de aço poderia ter aguentado tudo aquilo que tu aguentas-te meu amigo. E a tua armadura não era visível, mas que existia, não tenhamos qualquer dúvida.



Despedi-me de ti naquela sexta-feira, dia 12, em que foste transferido para a UCI, com o recado que estaria a tua espera e que não demorasses. Demoras-te e agora ficarei eternamente à tua espera meu amigo, naquele lugar onde não te voltarei a ver entrar, onde tu tanto querias ir e passar bons momentos, e nem mesmo assim, com quem adorava conviver na frente com o risco, esta maldita doença te permitiu continuar o teu caminho connosco.

O teu lugar era na frente, de caras para os desafios, seja numa arena com os touros ou num hospital com um cancro. Nunca te vi virar costas aos desafios e fugir do que quer que fosse. Se era para fazer, “então vamos lá”. Até para um procedimento tão assustador como a punção lombar eu fui chamado para te segurar porque “ele é grande e tu és rapaz, ainda bem que estás cá para o agarrar” e aquilo que tinha tudo para me dificultar e exigir de mim esforço físico, se tornou apenas um abraço de amigos porque não vacilaste 1mm que fosse! E esta memória foi partilhada por ti várias vezes pelo que também a vou guardar e registar meu amigo.

Quando te conheci, no quarto 15-18, logo na primeira cama à direita, nem me estavas atribuído como doente nesse dia mas tinha o menino à tua frente. Nem falei directamente contigo mas estava na palhaçada com o miúdo da frente, o L., e ele disse alguma coisa que te fez rir a ti e ao teu pai, várias vezes e esse riso miúdo, não quero esquecer. Um dia mais tarde, numa das nossas conversas tu falaste-me nesse momento e no quanto te marcou esse dia, por teres percebido o quão especial era aquele lugar e as pessoas, o miúdo (L.) sem te conhecer ofereceu-te algo que tinha para comer e tu acho que nem aceitaste mas percebeste o valor da acção e tocou-te o coração. Pois bem que tinhas razão, aquele lugar é especial demais, pelo que se faz, por quem trabalha mas é ainda mais e, principalmente, pelos miúdos como tu que ali passam e marcam a história de cada centímetro de chão, paredes e tecto. São muitas as histórias juntos naquele serviço e ao lembrar-me delas tanto me fazem chorar como me aquecem o coração! Na ultima passagem de ano fiquei chateado por ter o meu grupo de amigos fora do hospital a festejar e eu fiquei a trabalhar. Hoje, percebo que foi uma bênção lá ter estado, porque foi lá passada contigo, mesmo que estivesses na casa de banho à meia-noite!



Não conheci ninguém que gostasse tanto de estar internado, que me mandasse mensagens a avisar quando ia internar e a chamar-me pelo messenger às 4h da manhã para lhe arranjar água, para não acordar a mãe e ainda ficarmos na conversa mais uma quantidade de tempo enquanto a tua mãe dormia. Nem acredito que não repetirei as nossas sessões de treino personalizado em bicicleta, onde quem nunca queria fazer desporto no quarto do internamento, cumpriu 30minutos ao som de música pimba! Tudo isto sempre fará de ti um ser especial, um miúdo tão único que me fez ultrapassar a barreira profissional para a pessoal sem dar conta! Foram horas de conversas, de partilhas de medos e dúvidas, que tentei aliviar e esclarecer! E juro meu amigo, juro que dei de mim o meu melhor meu amigo! Desculpa se mesmo assim o meu melhor, não foi o suficiente para te salvar mas eu tentei!! Tu que sempre gozaste com a minha fobia de vacas e me querias por na frente de uma para perder o medo, acredita que hoje, se isso fosse uma ajuda e fizesse tu puderes estar bem, então iria encher-me de coragem e entrar nessa arena! Mas de arenas e touros vou marcar apenas para mim o objectivo de nunca me esquecer do brilho que irradiava dos teus olhos quando estavas na presença da festa brava! Há pessoas que nascem com dons e tu, meu amigo, tinhas um que era o teu sonho, e mesmo que não o vejamos aqui no nosso mundo, espero que consigas cumpri-lo porque mereces tudo!



Há dois dias que procuro justiça mas já parei, porque seria uma busca sem fim. Como uma das pessoas mais importantes na minha vida me disse ontem: “Pára de procurar justiça por favor! Se houvesse, o teu serviço nem existia!”. E tem razão, por isso justo sei que não é, mas aconteceu e infelizmente não poderemos criar novas memórias mas irei reviver de forma saudável, as memórias dos momentos que passámos juntos e, com o tempo trocar apenas as lágrimas que me correm no rosto actualmente, por um sorriso, porque era assim que tu farias!

Tenho comigo algo que me ajudará a lembrar sempre de ti, os teus periquitos, que me ofereceste, enviados pelo teu avô. Se já me ligava a eles e foram importantes, então agora a missão de cuidar deles é ainda maior! Não tive oportunidade de te dizer mas digo-te agora nesta carta, que depois de muito tempo a aguardar, e umas quantas intercorrências que te contei, já nasceram as primeiras crias. Que cresçam fortes porque mal saberão eles o que representam para mim!

Obrigado por teres cruzado o meu caminho! Como tu um dia me disseste: “Que isto pelo menos me permita conhecer amigos!”. E conheceste acredita. Fizeste um amigo, que torce para que estejas bem, e que saibas que por muitas saudades que tenhamos, um dia vamos voltar a estar juntos! Agora, onde queres que estejas, vai preparando o espaço para a nossa grande festa de reencontro porque eu não me esqueço das promessas e da comida e bebida trato eu! Há duas promessas a cumprir contigo!

Não acredito em coincidências e soube da tua perda logo após ter saído do cinema onde o filme que vi se chamava “Assim nasce uma estrela”. E nasceu. Onde quer que estejas, a brilhar e a emanar aquela tua gargalhada e o teu sorriso, guarda um lugar bem pertinho, porque um dia quero voltar aquele abraço (desta vez sem qualquer agulha associada prometo), quero voltar a ir ao parque de campismo almoçar contigo, ver a largada dos touros para as ruas e posso até voltar a tocar e a cantar a musica que vos cantei aquele dia no hospital!

Que esta despedida seja temporária e lembra-te que aqui, nesta arena da vida, as saudades apertam mas fomos muitos felizes por termos tido a honra de te conhecer!

Obrigado e até um dia João!

Mário Lopes



sábado, 22 de setembro de 2018

Era uma vez...


Era uma vez…
Era assim que gostaria de começar a descrever a história da minha profissão ou até de um turno meu mas, infelizmente, não posso começar assim pois nunca será uma fábula ou história de encantar. Não posso iniciar assim porque tudo é real, porque adormeço e acordo e apercebo-me que ao invés de sonhos e pesadelos, se trata de acontecimentos autênticos. Não que não os sonhe mas sim porque, quando a memória os repete é porque já os vivi antes.
“Porque não fui para engenheiro?” - Perguntei eu para ninguém, ou para mim mesmo, a meio de um “infernal” turno da noite, cujos sons vividos ali, agoniam a minha mente e mancharam a minha alma até hoje. Não obstante o facto de estar num turno cujo horário altera o nosso bem-estar por razões óbvias (quem trabalha por turnos rotativos entenderá perfeitamente), ainda as vivências e ocorrências, com gemidos constantes e dor de uma criança nos fazem, ainda hoje, perder o sono. Foi um turno de loucos este que vos falo, relativamente recente, onde desejei ter uma caixa insonorizada onde, por breves momentos, me fosse permitido fechar, gritar até expulsar todos os meus “demónios” e depois sair, “exorcizado” dos medos e agonias da minha própria incapacidade de fazer melhor. Há dias que marcam a alma, como já alguém o dissera outrora, e certamente que este foi um deles. Valeu o trabalho de equipa, o apoio incondicional das colegas enfermeiras e médicas e a vontade de fazer o melhor, da melhor forma que conhecíamos, pelo tesouro daquela mãe e pai, que desde que entraram naquelas portas de vidro, se tornou também tão nosso. Não falo nomes, não o posso fazer mas se algum dia a mãe e o pai lerem isto e perceberem que falo de vós, permitam-me dizer-vos obrigado por nos ajudarem a nunca baixar os braços e parabéns pela vossa coragem, força e determinação no caminho com o vosso filho!
O sentido negativo desde turno não foi isolado por ali. Depois deste atrás falado seguiram-se mais uns quantos assim difíceis (senão todos eles, com intensidades e causas diferentes). 
Há complicações neste caminho, há estradas com tantas curvas apertadas e com caminhos que não levam a lugar algum e isso dói-nos tanto quanto possam imaginar. As famílias sofrem, certamente horrores com algumas notícias mas posso garantir-vos que nós, enfermeiros, por trás dos sorrisos e manifestações de força e apoio, também sofremos muito convosco e a dor é, em parte, partilhada. Há alturas que apetece ter poderes para parar o tempo, para mudar rumos e até curar. Mas voltaríamos ao “era uma vez…” e, novamente concluamos que não estamos numa fábula mas sim numa real história de encantar e essas, infelizmente, não acabam sempre bem.
Queria ter voltado ao blogue antes, já mo pediram tantas vezes nestes últimos tempos mas não fui capaz. Podia escrever algo ou partilhar textos mais antigos mas não era justo nesta altura. A minha alma anda um pouco “rachada” e tinha de tentar assentar ideias antes de escrever. Devia isso a mim, a quem lê e a quem partilha comigo as histórias do dia-a-dia do meu local de trabalho, aquele mundo brilhante e especial em que apesar de tudo e desta fase mais difícil, me obrigo a acreditar que existe.
Sou fascinado pelo meu trabalho desde que ali estagiei e principalmente desde que ali comecei a exercer a minha profissão em 2016. Quem me conhecesse, quem lida comigo dentro e fora do trabalho e penso que principalmente, as crianças de quem cuido diariamente percebem o quanto eu amo o que faço e dou o meu melhor. Se noutras profissões isso pode ser o suficiente para o sucesso, ali infelizmente não o é. O nosso sucesso profissional não está obrigatoriamente associado ao sucesso real do que fazemos e isso vai-nos lesando. Leva-nos a um desgaste e a mim leva-me a momentos de reflexão muito próprios. Vivo o trabalho dentro e fora de onde o exerço, com plena noção das consequências disso. Contudo quem lida comigo nos últimos tempos, e ouve os desabafos sabe o desgaste e as dificuldades em lidar com tudo o que tem acontecido nos últimos tempos e assumo que  eu próprio cheguei a temer pela minha saúde mental. Fui aconselhado por quem me quer bem (família e amigos), mesmo sabendo o quanto amo este local, a mudar o rumo, a fazer algo por mim para que as minhas energias não me consumissem. Mas sou teimoso, muito teimoso e recuso-me a baixar os braços a esta minha luta e esta minha missão com a qual me comprometi desde 2016. Esta fase foi, é e será mais uma fase de superação, mais um obstáculo a ser ultrapassado e quem ali está comigo sabe que há mimos dos pais e dos pequenos heróis que nos fazem seguir, mesmo quando não são propositados nem pensados e vêm sob a forma de pequenas palavras, elogios, sorrisos ou acções. E esses mimos sim, são a energia que precisamos para nos ajudar a recuperar e ganhar forças para cada dia que ali estamos.  
Se ali tenho crianças que lutam diariamente contra algo tão difícil, que direito terei eu de pensar sequer em desistir? De baixar os braços na ajuda daqueles que mais de mim e dos meus colegas precisam? Ninguém vence isto sozinho, seja quando o objectivo é a cura ou, se pelo contrário, quando a ciência não consegue, de momento, ter nada mais a oferecer e outras decisões são tomadas! Como eu disse há umas semanas a um dos meninos que entrou naquele serviço: “isto é um jogo de equipa, não se consegue nunca sozinho e se tu és a personagem principal da equipa, nós enfermeiros, médicos, auxiliares e a tua família, somos os outros jogadores e juntos vamos fazer o nosso trabalho”! Poucos dias depois soube por ele que, como bom capitão de equipa/treinador, me atribuiu a função de guarda-redes. Assim sendo, quer na equipa dele, quer na dos outros pequenos e grandes heróis, farei o possível para defender os remates do nosso grande e poderoso inimigo.


Imagens retiradas do Google
Por vezes só queríamos que fosse mais fácil, que esta sensação de afogamento no trabalho, onde parece estarmos constantemente a procura de ar para respirar, ficasse mais facilitada. Mas para isso eram precisos determinados poderes, que não existem nas “fábulas reais”, portanto vamos lá vestir os equipamentos azuis turquesa e brancos, encarar o jogo de frente e aguentar o embate dos remates do adversário da melhor forma possível.
Podia ter ido para engenheiro (com as muitas dificuldades para tirar um dos muitos cursos dessa área, e posteriormente o exercer)? Podia mas se o Mário hoje fosse engenheiro, não seria enfermeiro, logo não estava a trabalhar onde estou por isso peço desculpa ao primeiro mas o segundo terá sido e continuará a ser mais importante para a vida de alguém!


Mário, o Enfermeiro Guarda-Redes.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

3 anos de mudança, 2 anos de IPO


Pois bem, pouco passava das 00h e fui assoberbado por memórias. Memórias boas, memórias tristes, pelo que significaram, e outras memórias que marcaram voltas de muitos graus na minha vida. Se a vida dá muitas voltas, pois que parece que dia 5 de Julho parece ser a data das minhas mais significativas mudanças.
Há dois momentos marcantes nesta data na minha vida:
- 5 de Julho de 2015 - Larguei a minha vida em Évora e o serviço da Medicina 1, e consequentemente cheguei a Lisboa para ingressar no Hospital Fernando da Fonseca;
- 5 de Julho de 2016 – Primeiro dia no serviço de Pediatria do IPO de Lisboa.

Primeiramente, faz hoje 3 anos que resolvi “abandonar” a vida que tinha, que despertei para a procura de um sonho e com todas as consequências e sofrimento que também me traria. Deixei Évora, deixei aquela que foi a minha cidade e a minha casa por 9 anos, onde fui e serei sempre muito feliz, para ir para a Capital. Não por desejar e sonhar com Lisboa mas sim porque as oportunidades e sonhos a concretizar só ali seriam possíveis. Fi-lo porque a vida estava parada e o sofrimento de uma solidão anunciada não traziam nada de bom. Haviam sonhos estagnados no “semáforo da vida”, à espera de serem vividos.
E acordei, respirei fundo, calculei, deixei fluir a energia necessária e resolvi tomar decisões. Vim e deixei para trás uma vida já construída e onde fui muito feliz. Mas agora já não fazia sentido. Podia ter crescido ainda mais naquele “vaso” que foi a Medicina 1 mas todas as plantas postas em vaso, precisam de ser replantadas e, eu precisava de ser posto em solo fértil para continuar a crescer. O mais importante é que não vim sozinho, trouxe comigo as memórias, as pessoas especiais no coração e na mente e, sempre que volto, sinto o mesmo carinho e o mesmo amor que tinha quando ali estava. Na passada quarta-feira após meses de distância reencontrei-vos e bolas, parece que nunca saí daí! Foi tão bom rever-vos! A força dos vossos abraços, os vossos beijinhos trás consigo um terramoto de emoções fortes e o desejo de ter poderes e conseguir, por tudo, voltar atrás no tempo, um dia que fosse, e ter a honra de trabalhar novamente ao vosso lado!



Há sítios que serão sempre a nossa casa, há camisolas que vestimos e defendemos em algum momento da nossa vida e serão sempre especiais para nós. Assim o é a Medicina 1, assim o é o HESE e assim será a cidade de Évora. Posso viver em 10 cidades, poderia ter passado por 15 locais de trabalho mas nunca nada será como o primeiro sítio, por todo esse poder. Todo o jovem que sai de casa e vai “para o mundo”, pode ter uma imensidão de oportunidades mas nunca haverá local como a nossa casa, aquele espaço onde temos “a nossa base”.
Estou a trabalhar hoje onde sempre quis estar, num sonho adormecido e que foi protelado por outras prioridades mas o primeiro local é sempre especial. Tenho saudades vossas minhas amigas e amigos, do quanto me ensinaram e ajudaram, do que fizeram de mim e da honra que era prestar cuidados ao vosso lado! Os melhores exemplos, os melhores conselhos, as maiores festas e parvoíces e todo o carinho que nunca deixou de existir.







Ainda passei um ano em busca do meu sonho e nesse período passei por outro local que me é muito especial. Não pelo local mas sim pelas pessoas que ali conheci e que ainda hoje tenho comigo. No Hospital Fernando da Fonseca muito aprendi, “caí de paraquedas”, assustado na capital, num serviço novo e bem diferente do anterior, onde tanta gente especial ficou para trás. Fui apoiado, ajudado, ensinado e encontrei pessoas realmente especiais e que ainda hoje partilham a minha vida!




Mas a vinda para a capital era para concretizar o sonho e ainda estava à espera. Lutei, procurei, e encontrei. Deram-me a mão e chamaram-se do cimo do 7º piso para poder subir para o sonho. Todo um mundo de oportunidade, de objectivos a atingir e de vivências para ter. No dia 5 de Julho de 2016 comecei a exercer funções naquele que, para mim, é o mais especial dos serviços: Pediatria do IPO de Lisboa. Tudo mudou nesse dia, o que era certo deixou de ser, o medo sempre existiu pela responsabilidade que tinha, não só com aquelas crianças e colegas, mas principalmente comigo mesmo, por ter “desistido” de tanto por aquela oportunidade!
E passaram 2 anos. Faz exactamente 2 anos que esta pequena criança de 30 anos entrou por aquelas portas de vidro e, quando estas se fecharam atrás de mim, soube que o desafio era para agarrar e viver. E hoje por muitas dificuldades físicas e psicológicas que possam ter surgido, não duvido que foi o melhor caminho. Que a vida seguiu o que tinha de seguir e estou onde sei que consigo ser o melhor de mim! Sempre dei o melhor por onde passei e trabalhei mas aqui sinto que estou naquele que é o meu habitat natural! Ou não seja eu uma eterna criança.



Cada dia exige algo de novo e há dias que só apetece sair e vir para casa. Fugir. Mas vale a pena, cada dia vale a pena e dá sentido ao que fazemos. Dá sentido ao que somos.
A vida nem sempre facilitou, levou-me muitas pessoas especiais (algumas sem volta), abanou-me a estrutura de vida, trocou-me planos e objetivos e trouxe à carga sonhos e desejos latentes. Mas aprendi que a vida leva mas também trás! Há sonhos que não podemos deixar de viver! Aqui, onde estou actualmente (e espero permanecer muitos anos) aprendemos, infelizmente, que a vida nem sempre nos permite concretizar todos os sonhos, por isso, se podemos lutar por eles, porque não o devemos fazer?!
Custa largar os “portos seguros”, aquilo que já conquistámos? Custa, mas por vezes para subir dois degraus, temos de descer um. Não sei se subi, o que desci, mas sei que cheguei. Cheguei ao sonho e estou a vivê-lo!
Aprendi que não existem sonhos perfeitos. Há lados negativos e difíceis nos sonhos mas aqui nesta nuvem onde vivo o meu sonho, no 7º piso, os sorrisos, as brincadeiras, os desenhos, os cheiros, os abraços e até os momentos maus, as lágrimas, as derrotas me fazem acreditar que estou onde tenho de estar! Onde sou feliz e onde sou capaz de dar o melhor para fazer feliz quem mais precisa!
Crianças e famílias que conheci, que conheço e que conhecerei, cujo destino vos trouxe ou, infelizmente trará, até aquele local tão mal visto e nada desejado, posso prometer-vos que darei o meu melhor. Não posso prometer curas, truques de magia, ou que não custe, mas posso prometer que farei o meu melhor, mesmo em dias maus. Só passaram dois anos mas ficarei o mais que conseguir, ao vosso lado e dos meus colegas (a quem quero muito agradecer por tudo e por viverem ao meu lado todo este percurso)! Muitos de vós ainda não percebem nem sabem ler mas, espero que um dia possam ler e isto e acreditem:
“Os sonhos, mesmo que temporariamente latentes, não precisam morrer e ser esquecidos! Podem e devem ser vividos! Se agora não os podem concretizar, não significa que não possam ser feitos e concretizados. Os sonhos fazem mexer o corpo e dão energia à alma! Uma criança e jovem sem sonhos e sem sorrisos e motivação é um corpo vazio. Recarreguem energia, apoiem-se nas famílias, nos amigos e naqueles que também passam a ser vossos amigos: nós.”
5 de Julho, não sei porque foste sempre uma data especial mas obrigado pelos feitos, pelas conquistas e por seres a data onde a coragem de mudar e lutar foram mais fortes que a preguiça e o medo. Que os próximos anos tragam mais coisas boas, sorrisos, força e sempre que possível, vitórias para mim, para todos aqueles que sempre me acompanharam e para todos os pequenos e grandes heróis que, no dia-a-dia, me metem um sorriso na cara e uma alma cheia.

A todos vocês, o meu muito obrigado!




quinta-feira, 19 de abril de 2018

As mãos de um enfermeiro


A vida é feita de episódios, de momentos consecutivos, definidos por unidades cronológicas mas vividos a velocidades e marcas próprias de cada um. É esta a razão pela qual, algum momento que nos enche de alegria, parece durar segundos e aquele momento enfadonho que nos custa a presenciar, demora uma verdadeira eternidade. Somos seres de lembranças, onde esses episódios atrás definidos nos ficam marcados na memória tal como, fisicamente, existem as fotografias. Tal como estas, existem uns desfocados, que ocorreram mas apenas ficou um resquício daquilo que aconteceu, e uns bem definidos e, passe o tempo que passar, nos estarão eternamente presentes, como acabados de acontecer. A diferença é que, ao contrário das fotografias, onde em duas dimensões apenas, temos marcado determinado segundo, associamos nas memórias: um determinado cheiro, textura, som ou até paladar.
É isto que nós, humanos, não percebemos ser tão valioso. Nascemos “em branco”, apenas com reflexos necessários à nossa sobrevivência, mas com o avançar do tempo (aquele que definimos como marca cronológica para estabelecer determinado período) vamos arquivando em nós mesmos, cada aprendizagem e memória, preenchendo o gigantesco caderno de memórias, com rabiscos, histórias, fotos, apontamentos e até folhas rasgadas, que mostram o percurso pessoal de cada um.
Ao longo da vida fazem-se escolhas e essas trazem-nos consequências, quer boas, quer más. Somos aquilo que passámos e seremos ainda mais, depois de vividos e guardados os percursos futuros. Não somos mais por ter mais ou melhor, somos os mesmos, com o mesmo valor, mesmo que “os cadernos pessoais” estejam mais ou menos preenchidos. É por isto que a vida humana vale o mesmo tenhas tu uma folha, ou uma biblioteca de livros naquela que será sempre “a tua estante”.
A tua “estante” de memórias encerra, em ti e, caso não pretendas partilhar com mais alguém, todo o percurso, os sonhos e os trilhos que viveste. Resumidamente, é o teu passado. Esse mesmo passado é a explicação do teu presente e a causa das decisões do teu futuro.
Após o meu percurso, uma das minhas escolhas passou por ser enfermeiro. Podia e queria ter sido outras coisas até esta decisão mas, no final, vários factores confluíram para esta mesma escolha. Cresci a perceber que teria de lutar para atingir os meus sonhos e quaisquer opções que fizesse na vida. Assim foi.
Mas se na mente guardamos memórias, fisicamente estas também são possíveis de ver.
E, com isto, quero apresentar-vos as minhas mãos:






Não são mãos calejadas. Não são mãos sujas e marcadas pelo trabalho na agricultura ou numa oficina, por exemplo. E antes de poder ser mal interpretado informo já que, de forma alguma, esta minha frase anterior é de desdém ou desrespeito pelos profissionais dessas áreas. Tenho família e amigos em ambos os ramos e o orgulho neles é imenso. Posso ainda acrescentar que não falo "da boca para fora" porque, até hoje, a minha educação permitiu-me perceber o quão duro pode ser a vida em algumas profissões. 
Os meus pais, de quem tenho o maior orgulho do mundo, trabalham há anos, durante muitas horas por dia, em algo que conheço de perto: a área do comércio. Esta mesma área, nomeadamente, supermercado e talho, foram as áreas que me permitiram sonhar com o meu presente, que me pagaram os estudos, me deram os brinquedos, a roupa e a comida na mesa, os meus pequenos luxos, a primeira viagem e o início da minha independência. Vejo e reconheço, mesmo que não o diga, o esforço que os meus pais fazem e sempre fizeram para eu e o meu irmão termos o melhor possível. O meu orgulho por eles é do tamanho do mundo e eles sabe-lo-ão. Mas, aprendi ao trabalhar com eles, que aquilo era o que não queria para mim. Aquela área nunca me faria sentir concretizado. E lutei para ser o que sou hoje e estar onde estou agora.
As mãos que acima vos mostro podem não ter calos. Podem não ter óleo, vestígios de terra ou de tinta. Mas essas mãos que vêm, em 30 anos de vida já cortaram carne num talho, já arrumaram prateleiras num supermercado, já apanharam batatas num campo, transportaram muito cimento, areia e pedra e já andaram na apanha da fruta. Tudo isto no passado, onde deixou as memórias, o valor do que é lutar e ajudar quando é preciso. Mas essas mãos, sem marcas fisicas evidentes, normalmente associadas a “trabalho duro”, são minhas. São de um enfermeiro.
Muitas pessoas que não percebem minimamente o valor da minha profissão diriam que são mãos de quem nunca soube o que era trabalhar a sério (como já ouvira antes da minha escolha de profissão), contudo saibam que estas mãos, sem “calos”, são mãos que: pegaram em bebés recém-nascidos e lhes prestaram os cuidados iniciais de vida; já cuidaram de crianças que nasceram antes da data prevista e nem condições tinham para sobreviver sem ajuda extra; já deram banho e trocaram fraldas a doentes cuja dignidade está dependente da possibilidade de serem ajudados por outros (desde bebés com 28 semanas de gestação a idosos com mais de 100 honrosos anos neste planeta); já alimentaram crianças e idosos; agarraram a mãos de desconhecidos quando estes deram o último suspiro e cuidaram dos seus corpos isentos de vida; limparam feridas; procuraram a cura e procuraram oferecer dignidade na vida e também na morte de crianças (desde bebés a adolescentes), adultos e idosos.
Resumindo, as mãos de um enfermeiro podem não ter calos mas não significa que o trabalho que exerçam seja menos "duro". Nós, enfermeiros, cuidamos de seres humanos da melhor forma que sabemos. Cuidamos de recém-nascidos, sejam prematuros ou não, crianças, adultos ou idosos, aquando de estados de saúde ou de doença. As mãos de um enfermeiro são um veículo para a dignidade do doente. Há muito mais no trabalho de um enfermeiro do que aquele que parece à primeira vista e é pena nem sempre ser reconhecido mas, o importante a reter é que não devemos julgar as mãos de um estranho. Pode não ter sinais evidentes de um trabalho árduo mas as mãos isentas de calos podem estar associadas a uma mente rica em momentos poderosos e pertencerem a alguém cujo coração é dedicado a cuidar de quem mais precisa.
Sei que os textos não passam disso, palavras escritas tornadas em frases mais complexas mas, se este texto chegou a ti de alguma forma, faz-me um favor: Lê, reflecte e da próxima vez que vires um enfermeiro lembra-te que, para estar onde está, abdicou de muita coisa para ajudar os outros e não critiques a sua formação nem o seu caminho. Muitos enfermeiros não o são porque não conseguiram ser médicos, não o são porque só limpam dejectos e trocam fraldas, não o são para fazer pensos, etc. Os Enfermeiros são Enfermeiros porque estão dispostos a abdicar de muita coisa para ajudar os outros e, se lutam por melhores condições (ordenados, horários e direitos), é porque, no seu trabalho, procuram dar também, as melhores condições a quem cuidam. Não julgues, respeita!

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Como se diz adeus Camilinha?

Despedir-me de ti não foi fácil. Nunca será fácil, pois a despedida não é um momento, mas um percurso. Mas sabes que mais? Não me despeço de forma definitiva e nem o pretendo! Tu mereces ser lembrada! Mereces ser recordada e portanto o despedir-me de ti implicava deixares de estar tão presente.
Podia ser uma pedra e podia nem querer entregar-me a esta profissão mas escolhi dedicar-me e tu conseguiste tocar-me o pequeno coração, a mim e a todos os que contigo contactaram, nem que fosse um curto período de tempo! És e foste sempre uma menina especial! Sei disso baseado no período que felizmente contactei contigo, mas posso assegurar isso também do período anterior, pelo que os teus pais e irmãs contam.
Como disse alguém querido dos teus pais na tua cerimónia oficial da despedida (algo que nós adultos tendemos a dar nomes feios): as gotas de água não desaparecem, estão connosco ao nível chão mas acabam sempre por subir para o céu e voltam a cair. Além de outros exemplos muito bonitos que ela disse, permite-me que te associe a uma brilhante e linda gota de água! E assim que pensei nisto desta forma, há alguns minutos, começou a chover? Será mera coincidência? Talvez sim, mas para mim eu entendo como quero e por isso, obrigado pela visita!
Chorei e choro ao lembrar-me de ti, dos momentos que tive contigo mas sabes que não foi nem será por algo de mau! Aqui o teu “marinho”, como sempre me chamavas evita muito chorar mas tu és uma pessoa mágica que me fizeste e ensinaste muita coisa boa, e isso faz-me chorar! Chorar de felicidade de te ter conhecido e a tristeza é apenas por ter a incapacidade de te ver novamente (os meus olhos já não são o que eram e teimam em não me deixar ver tudo). Sempre que me quiseres dar um beijinho, implicar comigo ou dizer simplesmente alguma baboseira gira, como não te posso ver como antes, vem em forma de gota de água. Saberei que estás perto.
Muito obrigado por todos aqueles momentos de felicidade e doçura que me deste a mim e a todos os meus colegas! És uma menina especial! Mas isso tu já sabias! Tu apesar da tenra idade sabias e sabes bem a qualidade que tinhas e como nos afetar da melhor forma ou até como nos fazer "sentir mal"! São poderes que quase todas as pessoas pequenas têm e que muitas vezes, quando crescem, perdem. Chama-se magia!
Os teus pais, as tuas manas e muitas outras pessoas já têm saudades tuas! Vão ter sempre mas já lhes disse que tinha de lhes dar os parabéns! Foram muito poucos anos connosco mas há algo que fiz questão de realçar: foram poucos mas soubeste, sem qualquer sombra de dúvida, o que é o Amor. Aquele verdadeiro sentido da palavra, e isso é provado pela forma como tu lidavas com toda a gente, mesmo em dias chateada, o carinho e amor transbordava no teu olhar! Eras a primeira a partilhar, a dizer “obrigado”, “desculpa”, “se faz favor”, etc. Sem que isso fosse associado a mau estar! Isso explica a qualidade de pessoa que eras e serás, o quanto deve orgulhar os teus pais!
Nunca mais me esqueço das palavras que a tua mãe me disse em tempos, aquando de um dos primeiros ciclos do teu anticorpo, ainda antes da fase de novas más notícias: “Mário, sabemos desde o inicio que o prognóstico não é bom, sabemos que agora está tudo bem mas que eventualmente não será uma vida longa, mas aprendemos a ver as coisas de uma perspectiva diferente, mesmo depois destes meses duros que é: temos desde o inicio mais 10 meses de Camila. Cada dia é um ganho e não um aproximar do fim.” E as palavras Camilinha, podem ter sido ditas assim assumo, porque não gravei, mas foi uma mensagem muito bonita que a tua mãe transmitiu quando o disse, pelo que memorizei e apre(e)ndi. É uma das coisas que aprendi com os teus pais (sim que eles são óptimos professores!).
Não sou pai, nem sei se um dia serei, mas ainda hoje disse a tua mãe, não tenho pelo que vou adoptando os dos outros! Desta forma não és minha filha nem nenhum dos outros meninos mas assumo que vou-vos adoptando um pouco como meus meninos, e isso permite dar o melhor de mim. Quero pedir-te desculpa se te falhei em algum momento, se não te aliviei a dor quando precisaste, se não consegui acalmar-te quando isso era exigido, nem se não estava presente quando chamaste por mim, mas acredita que dei o meu melhor, que contigo aprendi imenso pequena professora e se não fiquei diabético depois destes meses a cuidar de ti, não fico mais, pois eras uma grande doçura!
Estarei sempre aqui, a tratar de mais meninos como tu! Podem vir mil, que nenhum se compara a nenhum outro e o teu lugar Camilinha, fica guardado para ti! Que os abraços e palavras trocados com os teus pais cheguem a ti também e lembra-te que não só não serás esquecida como serás sempre lembrada! Perdemos a capacidade de te ver como antes, mas o que nos passaste permite-nos continuar a sentir-te, seja nas ondas do mar, na chuva, ou até nas poças! Obrigado por tudo e até já, com um beijinho enorme daquele que denominaste há algum tempo, e peço desculpa o egoísmo, o “teu enfermeiro preferido”.
Mário Lopes (“o Marinho”)